Personagem paradigmática do Espiritismo brasileiro, Chico Xavier é aqui considerado um dos principais responsáveis pela consolidação da "feição católica" de que se revestiu o Espiritismo no Brasil16. Essa síntese foi por ele produzida pela introdução tanto de práticas populares como institucionais do Catolicismo na performance espírita. Síntese que Chico Xavier realiza, na sua biografia, por duas vias: por um lado, a relação santorial, que caracteriza o Catolicismo popular, serviu-lhe de modelo para a construção e narrativa de sua experiência com os espíritos; por outro, sua imagem pública – o ideal de santidade que conforma o seu estilo de vida –, inspira-se em princípios da prática monástica católica. É o que pretendo demonstrar revendo alguns aspectos de sua biografia.
Uma vida contada a muitas mãos
Autor de mais de 400 títulos espíritas, Chico Xavier pouco escreveu sobre si mesmo. Dois prefácios, escritos nos anos 30, foram os únicos documentos encontrados. Há, porém, inúmeras biografias produzidas ao longo de sua carreira que compilam casos, episódios e eventos contados, em primeira mão, pelo próprio Chico Xavier. Assim, por meio de terceiros a sua narrativa foi transformada numa espécie de "história oficial".
Uma das características desse relato é que ele se constrói em torno de uma única chave: a do sofrimento. Essa categoria narrativa estabelece laços de continuidade entre as etapas fundamentais de sua carreira e trajetória pessoal, cuja estrutura reproduz o modelo hagiográfico: 1) a fase profana, período que engloba a sua infância e adolescência, é marcada por conflitos surgidos no âmbito familiar e das relações primárias. Nessa etapa o modo de interpretação da experiência mediúnica é característico: tal como na história de vida de outros médiuns, esta é uma experiência rejeitada; 2) a conversão ao Espiritismo marca o início de uma nova etapa, de liminaridade, em que o afastamento do mundo é sinalizado pela tensão entre projetos pessoais e a imposição de um rígido programa de disciplinamento moral e de manejo dos "dons"; 3) a consolidação de sua liderança no campo espírita, associada à produção literária intensa, marca simbolicamente o itinerário de retorno19. Nessa etapa, assumindo a vida como cumprimento de uma missão, a renúncia a projetos de caráter pessoal se consolida fazendo-se acompanhar da produção de um estilo de vida exemplar.
Nesse percurso o confronto inicial com o imaginário católico e, posteriormente, a reinterpretação e apropriação de idéias e práticas deste constituem uma marca fundamental. Esse processo não envolve, porém, apenas a incorporação de práticas do Catolicismo popular, mas também do Catolicismo institucional, eclesiástico, o que se torna sobretudo relevante na terceira etapa de sua trajetória como se verá adiante.
"Com o diabo no corpo": a interpretação católica do fenômeno mediúnico
Nascido a 2 de abril de 1910, em Pedro Leopoldo, Minas Gerais, Chico Xavier teve uma educação eminentemente católica como era corrente entre os moradores do lugar. Mas já na infância, segundo seus relatos, começaram a ocorrer as primeiras manifestações de "contato com os espíritos".
O evento propulsor foi a morte de sua mãe, fato ocorrido em 1915, quando ele tinha apenas cinco anos. João Cândido, seu pai, era vendedor de bilhetes de loteria e viajava muito. Vendo- se, portanto, sem condições de criar os filhos sozinho resolveu distribuí-los entre parentes e vizinhos. Chico Xavier foi entregue à Rita de Cássia, sua madrinha, mais tarde sarcasticamente por ele definida como "grande educadora". De acordo com seus relatos ela o surrava com vara de marmelo todos os dias. Muitas vezes sem motivo. Os castigos, porém, aumentaram depois que ele contou-lhe "ter visto e conversado com a mãe no fundo do quintal". A partir daí, além da surras, a madrinha passou a dar-lhe garfadas na barriga acusando-o, em função de suas "conversas com os mortos", de "ter parte com o diabo". Esse suplício durou dois anos.
Depois disso Chico voltou a morar com o pai, que se casara novamente. A reestruturação da vida familiar não interrompeu, porém, a ocorrência das "visões". Segundo se conta, freqüentemente ele "levantava no meio da noite, batia papo com fantasmas e muitas vezes estragava o café da manhã do pai com notícias de parentes mortos e descrições de viagens por cenários fantásticos" (Souto Maior, 1995: 16). Essas experiências ele também relatava, em confissão, ao padre Scarzelli, pároco da cidade.
Sua madrasta, Cidália, com quem ele conversava nos fins de tarde ao pé do tanque, por inúmeras vezes ouviu-o dizer que "via próximas ao varal figuras cobertas com mantos coloridos" (: 17). Ela, segundo se conta, dava-lhe crédito, ao contrário de dona Rosária, sua professora primária. Ao participar de um concurso de redação instituído pelo governo do Estado de Minas Gerais em comemoração ao primeiro centenário da Independência, Chico levantou-se em meio à prova para comunicar à professora que pressentia a presença de um homem que lhe ditava um texto. Sem dar-lhe muita atenção, ela pediu que ele voltasse ao seu lugar e terminasse a prova. A notícia, porém, espalhou-se na sala e na aula seguinte os colegas fizeram-lhe um desafio. Como prova queriam que o "tal homem" viesse "outra vez, ali mesmo [...] à frente de todos para escrever sobre um tema escolhido por eles". O tema proposto, escolhido ao acaso por um dos meninos foi o grão de areia. Chico relata: "lembro-me que o espírito [...] ao meu lado começou ditando: 'Meus filhos, que ninguém escarneça da criação. O grão de areia é quase nada, mas parece uma estrela'" (Barbosa, 1992 [1967].
Fatos como esses se repetiam quase diariamente, em sonhos, na escola, nos momentos de ócio. João Cândido, pai de Chico Xavier, inúmeras vezes ameaçou internar o filho num sanatório. A tese de que se tratava de caso de loucura era, porém, refutada pelo padre Scarzelli, que procurava aplacar a situação com o receituário católico tradicional: novenas, penitências, rezar mil ave-marias...
Essas duas posições com relação ao fenômeno mediúnico (assinaladas, de um lado, pelo padre e a madrinha nos termos da religião, de outro, pelo pai, que aderia ao argumento médico) ilustram os termos do debate da questão na época. Conforme Giumbelli (1997), que se dedica ao estudo desse tema, as primeiras décadas do século XX constituem o período em que o pensamento médico no Brasil amplia significativamente o espaço editorial conferido ao tema, o que se observa pelo aumento do número de artigos, teses e livros sobre o assunto (: 198). Construindo-se à época como discurso hegemônico, a perspectiva médica teve o endosso do discurso jurídico, resultando dessa aliança um prolongado embate com a versão tradicional, religiosa do fenômeno (Giumbelli, 1994).
Mas numa pequena cidade do interior de Minas Gerais, como era Pedro Leopoldo no início do século XX, o padre era ainda considerado uma "autoridade". Ou seja, a ascendência do padre sobre as famílias dos meios populares corria incontestada. O relato biográfico de Chico Xavier é exemplar nesse sentido. Vários são os episódios relembrados que sugerem o poder da opinião padre. Chico Xavier lembra, por exemplo, que por ordem do pároco participou, aos nove anos, de uma procissão carregando uma pedra de 15 quilos na cabeça. A penitência devia ser complementada pela obrigação de repetir mil vezes a ave-maria. Não se tratava, porém, de prática isolada. Impuseram-lhe que freqüentasse regularmente a igreja, participando inclusive das novenas. Os resultados, contudo, não foram os esperados. Segundo seu relato, enquanto rezava e contava acompanhando a procissão, "um espírito desocupado fazia caretas e bocas para atrapalhar seus cálculos" (Souto Maior, 1994: 11). Além disso, quando estava na igreja, cumprindo as novenas, "assombrações flutuavam sobre os bancos e beijavam os santos" (idem). Padre Scarzelli decidiu então "ser mais duro". Aconselhou João Cândido, pai de Chico, a ocupar o tempo livre do menino, arranjando-lhe um emprego. À época a fábrica de tecidos da cidade estava empregando crianças para trabalhar no período noturno. Chico Xavier foi admitido: "Fui trabalhar como tecelão. Entrava às três da tarde, saía à uma da madrugada. Dormia até às seis, ia para a escola, saía às onze. Almoçava, dormia uma hora [...] e entrava de novo na fábrica" (Machado, 1992[1984]: 25-6). A rotina diária era estafante para uma criança de dez anos. Restava-lhe apenas o fim de semana para descanso e lazer. Algumas atividades, contudo, foram-lhe proibidas: o padre Scarzelli recomendou, como medida complementar, que se evitasse a "má influência" dos livros, revistas e jornais. Assentindo, João Cândido "fez uma fogueira das páginas proibidas" (: 18). Dizendo-se inconformado, Chico relata que recorreu, como sempre fazia, ao espírito da mãe. Esta lhe deu um conselho: "Aprenda a calar-se. Quando lembrar, por exemplo, alguma lição ou experiência recebida em sonho, fique em silêncio. Mais tarde talvez você possa falar" (idem). Chico passou então a restringir seus comentários ao confessionário. Mas o padre Scarzelli insistia: "Ninguém volta a conversar depois da morte" (idem). E acrescentava: "O demônio procura perturbar-lhe o caminho" (idem). Chico, porém, não se deixava convencer: "Mas padre, foi minha mãe quem veio" (idem). O padre retrucava: "Foi o demônio" (idem).
Os exemplos poderiam continuar sendo multiplicados, mas os acima apresentados parecem ser suficientes para evidenciar o peso e significado da interpretação institucional, católica, do fenômeno mediúnico nos meios populares à época. A convergência de leigos e eclesiásticos na interpretação do fenômeno mediúnico chama atenção, considerando-se que o pároco e a madrinha de Chico Xavier o entendem da mesma forma, isto é, como "coisa do diabo". Essa convergência se manifesta também quanto às atitudes assumidas em relação ao fenômeno da mediunidade: ambos entendiam ser preciso reprimi-lo, inibir sua manifestação, num caso por meio de castigos corporais, noutro pela oração e penitência.
Confrontando-se na sua experiência cotidiana com esse caráter prescritivo do Catolicismo oficial em relação ao fenômeno da mediunidade, Chico Xavier desenvolveu nessa etapa inicial de sua trajetória uma relação ambígua com as crenças católicas: sua "carolice de infância" se desenvolveu permeada de experiências que fogem ou são reprimidas pelo Catolicismo oficial, resultando em conflitos pessoais, tanto com representantes da Igreja, como com membros do universo de suas relações de sociabilidade primária.
Sandra Jacqueline Stoll
Professora do Departamento de Antropologia – UFPR
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