29 novembro 2009

O PADEIRO DESUMANO - SUICÍDIO

Revista Espírita, maio de 1862
Uma correspondência de Crefled (Prússia Rhenana), de 25 de janeiro de 1862, e inserto no Constitutionnel de 4 de fevereiro, contém o fato seguinte:
"Uma pobre viúva, mãe de três filhos, entra na padaria e pede, insistentemente, dar-lhe crédito de um pão. O padeiro recusa. A viúva reduziu seu pedido a meio pão, e por fim, a um pedaço de pão, somente para seus filhos famintos. O padeiro ainda recusa, deixa o lugar e entra atrás da padaria; a mulher, crendo não ser vista, se apodera de um pão e se vai dali. Mas o furto, imediatamente descoberto, é denunciado à polícia. " Um agente vai à casa da viúva e a surpreende quando cortava pedaços de pão para seus filhos. Ela não nega o furto, mas se escusa sobre a necessidade. O agente da polícia, censurando a dureza do padeiro, insiste para que ela o siga ao escritório do comissário. "A viúva pede somente alguns instantes para mudar de roupa. Ela entra no quarto de dormir, mas ali permanece por tanto tempo para que o agente, perdendo a paciência, se decida a abrir a porta: a infeliz estava por terra inundada de sangue. Com a mesma faca que acabara de cortar o pão para seus filhos ela havia posto fim aos seus dias." Esta notícia, tendo sido lida na sessão da Sociedade, de 14 de fevereiro de 1862, foi proposta fazer a evocação dessa infeliz mulher, quando ela mesma veio se manifestar, espontaneamente, pela comunicação simples. Ocorre, freqüentemente, que Espíritos que estão em questão se revelem desta maneira; é incontestável que são atraídos pelo
pensamento, que é uma espécie de evocação tácita. Sabem que se ocupa deles, e vêm; se comunicam, então, se a ocasião lhes parece oportuna, ou se encontram um médium de sua conveniência. Compreender-se-á, segundo isso, que não é necessário nem ter um médium, nem mesmo ser Espírita para atrair os Espíritos com os quais alguém se preocupa. "Deus foi bom para a pobre desviada, e vem vos agradecer pela simpatia que consentistes
me testemunhar. Pois bem! diante da miséria de meus pobres e pequenos filhos, me esqueci e falhei. Então me disse: Uma vez que és impotente para alimentar teus filhos e que o padeiro recusa o pão àqueles que não podem pagá-lo; uma vez que não tem nem dinheiro, nem trabalho, morra! Porque quando não estiverdes mais ali virão em sua ajuda. Com efeito, hoje a caridade pública adotou esses pobres órfãos. Deus nos perdoou, porque viu minha razão vacilar e meu desespero horrível. Fui a vítima inocente de uma sociedade mal, muito mal regulada. Ah! agradecei a Deus por vos ter feito nascer neste belo país da França, onde a caridade vai procurar e aliviar todas as misérias. "Orai por mim, a fim de que possa logo reparar a falta que cometi, não por covardia, mas
por amor maternal. Quanto vossos Espíritos protetores são bons! Eles me consolam, me fortalecem, me encorajam, dizendo que o meu sacrifício não foi desagradável ao grande Espírito, e que, sob o olhar e a mão de Deus, preside aos destinos humanos."
A POBRE MARY (Méd. Sr d'Ambel).

26 novembro 2009

O PLANETA VÊNUS

Revista Espírita, agosto de 1862
(Ditado espontâneo. - Médium, Sr. Costel.)

O planeta Vênus é o ponto intermediário entre Mercúrio e Júpiter; seus habitantes têm a mesma conformação física que a vossa; o mais ou menos de beleza e de idealidade nas formas é a única diferença delineada entre os seres criados. A sutileza do ar, em Vênus, comparável à das altas montanhas, torna-o impróprio aos vossos pulmões; as doenças ali são ignoradas. Seus habitantes não se nutrem senão de frutas e de laticínios; ignoram o bárbaro costume de se nutrirem de cadáveres de animais, ferocidade que não existe senão nos planetas inferiores; em conseqüência, as grosseiras necessidades do corpo são destruídas, e o amor se enfeita de todas as paixões e de todas as perfeições apenas sonhadas sobre a Terra. Como na madrugada onde as formas se revestem indecisas e alagadas nos vapores da manhã, a perfeição da alma, perto de ser completa, tem as ignorâncias e os desejos da infância feliz. A própria natureza reveste a graça da felicidade velada; suas formas flácidas e arredondadas não têm as violências e as asperezas dos panoramas terrestres; o mar, profundo e calmo, ignora a tempestade; as árvores não se curvam jamais sob o esforço da tempestade e o inverno não as despoja de sua verdura; nada é estridente; tudo ri, tudo é
doce. Os costumes, cheios de quietude e de ternura, não têm necessidade de nenhuma repressão para ficarem puros e fortes.
A forma política reveste a expressão da família; cada tribo, ou aglomeração de indivíduos, tem seu chefe pela classe de idade. Ali a velhice é o apogeu da dignidade humana, porque ela aproxima do objetivo desejado; isenta de enfermidades e de fealdade, ela é calma e irradiante como uma bela tarde de outono. A indústria terrestre, aplicada à pesquisa inquieta do bem-estar material, é simplificada e quase desaparece nas regiões superiores, onde não tem nenhuma razão de ser; as artes sublimes a substituem e adquirem um desenvolvimento e uma perfeição que os vossos sentidos espessos não podem imaginar. As vestes são uniformes; grandes túnicas brancas envolvem com suas pregas harmoniosas o corpo, que não desnaturam. Tudo é fácil para esses seres que não desejam senão Deus e que, despojados dos interesses grosseiros, vivem simples e quase luminosos. GEORGES.
(Perguntas sobre o ditado precedente; Sociedade de Paris; 27 de junho de 1862. Médium, Sr. Costel.)
1. Destes ao vosso médium predileto uma descrição do planeta Vênus, e estamos
encantados de vê-la concordar com o que já nos foi dito, todavia, com menos de precisão. Pedimos consentir em completá-la, respondendo a algumas perguntas.
Quereis nos dizer, primeiro, como tendes conhecimento desse mundo? - R. Eu sou errante, mas inspirado por Espíritos superiores. Fui enviado em missão a Vênus.
2. Os habitantes da Terra podem ali estar encarnados diretamente saindo daqui? - R. Deixando a Terra, os seres mais avançados sofrem a erraticidade durante um tempo mais ou menos prolongado, que despoja inteiramente dos laços carnais, rompidos imperfeitamente pela morte.
Nota. -A questão não era saber se os habitantes da Terra podem ali estar encarnados imediatamente depois da morte, mais diretamente, quer dizer, sem passar por mundos intermediários. Ele respondeu que isso é possível para os mais avançados.
3. O estado de adiantamento dos habitantes de Vênus lhes permite lembrarem de sua estada nos mundos inferiores, e de estabelecerem uma comparação entre as duas situações? - R. Os homens olham para trás pelos olhos do pensamento, que reconstrói num único impulso ao passado desvanecido. Assim o Espírito avançado vê com a mesma rapidez que se move, rapidez mais fulminante que a da eletricidade, bela descoberta que se liga estreitamente à revelação do Espiritismo; ambos levam neles o progresso material e intelectual.
Nota. - Para estabelecer uma comparação, não é necessário saber que posição se ocupou pessoalmente; basta conhecer o estado material e moral dos mundos inferiores, pelos quais se teve que passar para apreciar-lhes a diferença. Segundo o que nos foi dito do planeta Marte, devemos nos felicitar por ali não estar mais; e, sem sair da Terra, basta considerar os povos bárbaros e ferozes e sabermos que tivemos que passar por esse estado, para nos sentir mais felizes. Não temos sobre os outros mundos senão notícias hipotéticas; mas pode
que, naqueles que estão mais avançados do que nós, esse Conhecimento tenha um grau de certeza que não nos é dado.
4. A duração da vida ali é proporcionalmente mais longa ou mais curta do que sobre a Terra? - R. A encarnação, em Vênus, é infinitamente mais longa do que não o é a prova terrestre; despojada das violências humanas, detida e impregnada pela vivificante influência que a penetra, ensaia as asas que a levarão nos planetas gloriosos de Júpiter, ou outros semelhantes.
Nota. - Assim como já fizemos observar, a duração da vida corpórea parece ser
proporcional ao adiantamento dos mundos. Deus, em sua bondade, quis abreviar a prova nos mundos inferiores. Por essa razão se junta uma causa física, é que, quanto mais os mundos são avançados, menos os corpos são usados para a devastação das paixões e das doenças que lhes são as conseqüências. O caráter sob o qual pintais os habitantes de Vênus deve nos fazer supor que não há entre eles nem guerras, nem querelas, nem ódios, nem ciúmes? - R. Os homens não se tornam senão o que as palavras podem exprimir, e seu pensamento limitado está privado do infinito; assim atribuis sempre, mesmo aos planetas superiores, as vossas paixões e os vossos motivos inferiores, vírus depositado em vossos seres pela grosseria do ponto de partida, e do qual não vos curais senão lentamente. As divisões, as querelas, as guerras,
são desconhecidas em Vênus, tão desconhecidas quanto é entre vós a antropofagia.
Nota. - A Terra, com efeito, nos apresenta, pela inumerável variedade dos graus sociais, uma infinidade de tipos que pode nos dar uma idéia dos mundos onde cada um desses tipos é o estado normal.
6. Qual é o estado da religião nesse planeta? - R. A religião é a adoração constante e ativa do Ser supremo; adoração despojada de todo erro, quer dizer, de todo culto idolatra.
7. Todos os habitantes estão no mesmo grau, ou bem os há, como sobre a Terra, os mais ou menos avançados? Neste caso, a que habitantes da Terra correspondem os menos avançados? - R. A mesma desigualdade proporcional existe entre os habitantes de Vênus quanto entre os seres terrestres. Os menos avançados são as estrelas do mundo terrestre, quer dizer, os gênios e os homens virtuosos.
8. Há senhores e servidores? - R. A servidão é o primeiro grau da iniciação. Os escravos daantigüidade, como os da América moderna, são seres destinados a progredir num meio superior àquele que habitaram em sua última encarnação. Por toda a parte os seres inferiores estão subordinados aos seres superiores; mas em Vênus essa subordinação moral não pode ser comparada à subordinação corpórea, tal qual existe sobre a Terra. Os superiores não são os senhores, mas os pais dos inferiores; em lugar de explorá-los, ajudam o seu adiantamento.
9. Vênus chegou gradualmente ao estado em que está? Passou anteriormente pelo estado em que está a Terra e mesmo Marte? - R. Reina uma admirável unidade no conjunto da obra divina. Os planetas, como os indivíduos, como tudo o que é criado, animais e plantas, progridem inevitavelmente. A vida, em suas expressões variadas, é uma ascensão perpétua para o Criador; ela desenrola, numa imensa espiral, os graus de sua eternidade.
10. Tivemos comunicações concordantes sobre Júpiter, Marte e Vênus; porque não tivemos sobre a lua senão coisas contraditórias e que não puderam fixar a opinião? - R. Essa lacuna será preenchida, e logo tereis sobre a lua revelações tão nítidas, tão precisas quanto às que obtivestes sobre outros planetas. Se elas não vos foram ainda dadas, disso compreendereis mais tarde a razão.
Nota. Essa descrição de Vênus, sem dúvida, não tem nenhum dos caracteres de uma autenticidade absoluta, e também não a damos senão a título condicional. No entanto, o que já foi dito desse mundo, lhe dá, pelo menos, um grau de probabilidade, e, seja como for, o que não é menos o quadro de um mundo que deve, necessariamente, existir para todo homem que não tenha a orgulhosa pretensão de crer que a Terra é o apogeu da perfeição humana; é um anel na escala dos mundos, é um grau necessário àqueles que não sentem a força de ir sem dificuldade a Júpiter.

23 novembro 2009

A PRECE E A OBSESSÃO

Na obra "Religião", no derradeiro Capítulo, registra-se um substancial estudo sobre a prece, estudo magnífico que o Dr. Carlos Imbassahy apóia na evidência dos fatos por ele mesmo observados e trazidos ao conhecimento do público.
Um desses fatos é o que nos permitimos reproduzir, sem omissão de uma vírgula. Ouçamos o beletrista baiano:
"Numa sessão, aliás teórica, falávamos sobre pontos evangélicos, quando uma jovem presente toma o aspecto de louca furiosa e quer rasgar-se.
Depois, investe contra os assistentes. Houve pânico, que aumentou quando a vimos querer atirar-se de uma janela.
Uns a seguravam; outros davam-lhe passes; outros traziam-lhe coisas para cheirar; cada qual alvitrava um meio, todos inteiramente inúteis, todos lamentavelmente ineficazes.
Fizemos que se retirassem os curiosos; e nós, cercado de um grupo de médiuns, procuramos dar passes na possessa. Estes contribuíram para enfurecê-la ainda mais; ela se lançava a nós, dizendo-nos impropérios, arranhava-nos, esbofeteava-nos.
Já estávamos exaustos.
Os amigos entreolhavam-se pasmados, desanimados. Era preciso chamar uma ambulância.
Mas seria o escândalo. Seria a confissão completa da falência de todos os nossos processos.
As lágrimas vieram-nos aos olhos. Compreendemos, então, a extensão imensa de nossas fraquezas. E apelamos para o Pai. E oramos.
E orávamos e chorávamos. Por que negar a nossa fragilidade? Éramos o responsável pela reunião. Chorávamos e orávamos.
E quando um dos médiuns já ia descer as escadas em busca de socorro psiquiátrico, diz a jovem, com voz mudada, com timbre masculino:
- Ah! Puderam mais do que eu, desta vez!
E se acalmou. Acordou. E perguntou-nos, sorridente, ingênua, ignorante de tudo que se passara:
- Que foi? Que houve? ...
Estava curada. Estava curada pela prece".
O caso que acabamos de transcrever faz-nos lembrar o que se conta nos Evangelhos, acerca de um moço possesso de um Espírito perverso, cujo genitor suplicara a Jesus que o curasse, depois de o terem tentado, sem nenhum sucesso, os próprios discípulos do Mestre de Nazaré.
Vendo estes que, a uma ordem de Jesus, o terrível obsessor deixara imediatamente o jovem, que dantes vivia metido em correntes, como louco indomável, aproximaram-se do Senhor, em particular, e indagaram:
"- Por que não pudemos nós expulsá-lo?"
"- Esta casta de Espíritos", respondeu Jesus, "só se consegue expelir à força da oração..."(Marcos, 9;14-29; Mateus, 17;14-21).

Carlos Bernardo Loureiro
(Jornal Mundo Espírita de Agosto de 1998)

21 novembro 2009

EMANCIPAÇÃO ESPIRITUAL DO HOMEM

IMANÊNCIA E TRANSCENDÊNCIA - Colocando o problema da evolução humana em termos de imanência e transcendência, segundo a acepção moderna desses vocábulos, podemos compreender melhor a natureza transcendente do horizonte espiritual. Os quatro horizontes que o antecedem: o tribal, o agrícola, o civilizado e o profético, representam o período de imanência do processo evolutivo. Nesse período, de acordo com o "princípio da imanência", de Le Roy, toda a potencialidade espiritual do homem encontra-se em desenvolvimento, tudo o que nele é implícito transita para o explícito. A experiência da magia, dos mitos agrários e da mitologia civilizada, das religiões organizadas e da eclosão profética, nada mais é do que uma seqüência de fases do período imanente, em que o homem acorda em si mesmo as forças latentes da alma, preparando-se para a fase de transcendência que virá com o horizonte espiritual.
Esse é um dos motivos por que a Revelação Cristã se mostra mais poderosa e atuante que as anteriores. Já vimos que o horizonte espiritual aparece com Jesus, com ele se define. Vimos também que Israel representou, mais do que os outros países, o momento em que as forças desenvolvidas no período da imanência atingiram a sua culminância. Assim, o próprio desenvolvimento histórico explica e justifica as afirmações místicas, aparentemente dogmáticas, da supremacia espiritual de Israel e do seu papel de povo eleito. Para a mentalidade mística dos horizontes anteriores, a posição de Israel não poderia ser interpretada senão como uma determinação celeste. A própria alegoria da Aliança confirma isto. O pacto firmado entre Deus e seu povo é a simples divinização de um sistema agrário de compromissos humanos. Mas era através dessa alegoria que os antigos conseguiam entender e explicar uma realidade inexplicável, qual fosse a supremacia espiritual do povo hebraico e o seu dever indeclinável de liderança mundial.
A incompreensão do fato permanece ainda hoje, tanto no seio das religiões cristãos quanto no próprio judaísmo. A expectativa milenária do Messias, e a ambição do domínio universal e absoluto, das seitas cristãs provindas do judaísmo, nada mais são do que resíduos do período de imanência. A destinação messiânica de Israel não foi e não é encarada no seu sentido histórico, mas no seu antigo aspecto teológico. Daí a razão do povo eleito esperar ainda o cumprimento da promessa divina, e das seitas cristãs modernas, que se julgam herdeiras da mesma promessa, insistirem tão firmemente nos seus direitos de dominação e orientação exclusiva das consciências, para a salvação das almas.
O Espiritismo, doutrina livre, dinâmica, sem dogmas de fé, sem intenções exclusivas ou pretensões salvacionistas, corresponde precisamente à fase de esclarecimento do horizonte espiritual. Por isso é que ele se apresenta como desenvolvimento natural do Cristianismo, seqüência inevitável do processo histórico, enfrentando o problema da salvação em termos de evolução, e procurando explicar as alegorias do passado à luz da compreensão racional. Curioso notar-se que, nesse ponto, os adversários do Espiritismo o acusam de racionalismo sustentando a tese imanente, ou seja, a tese provinda do período de imanência, segundo a qual existem mistérios que a razão não alcança. Entre esses mistérios, figura o da destinação messiânica de Israel, que, como vimos, não era explicável no período anterior, mas hoje é perfeitamente compreensível.
No período de imanência, o homem não havia atingido a emancipação espiritual que lhe permitiria encarar os grandes problemas da sua própria destinação. Possuindo, entretanto, o sentimento intuitivo desses problemas, procurava racionalizá-los através de símbolos, de alegorias. No período de transcendência, o homem, já espiritualmente desenvolvido, possui os elementos necessários para enfrentar esses problemas e resolvê-los. Isso não quer dizer, entretanto, que o Espiritismo se considere, ou que os espíritas se considerem como novos detentores da verdade absoluta. Pelo contrário: O Espiritismo proclama a existência de problemas que são ainda insolúveis, como o da própria natureza de Deus. Insolúveis, porém, no momento presente, uma vez que o processo evolutivo levará o homem, progressivamente, a desvendar os novos mistérios que lhe forem sendo propostos pela própria evolução.
As reservas modernas quanto ao racionalismo são explicáveis, diante da experiência que conduziu os homens ao ceticismo, à descrença, ao materialismo, e consequentemente a uma posição incômoda, de negativismo explícito ou implícito dos valores da vida. Mas o racionalismo espirita representa precisamente o reajuste da posição racionalista. Porque a razão aplicada ao julgamento do passado, em função das conquistas ainda recentes do presente, provoca desequilíbrio do espirito, quando se pretende estabelecer o absolutismo racional. No Espiritismo, a razão é apresentada como uma função do espirito, um dos seus instrumentos de ação, e não como o próprio espirito. O absolutismo da razão não existe, embora a razão se apresente como instrumento indispensável para o esclarecimento espiritual.
Por outro lado, é necessário considerar que a razão foi a escada de que o homem se serviu, para superar os horizontes anteriores, libertando-se do domínio das forças naturais ou instintivas. A razão é, por assim dizer, a alavanca espiritual que elevou o homem do período de imanência para o de transcendência, permitindo-lhe julgar-se a si mesmo e delinear as perspectivas da sua própria libertação. O Espiritismo, como doutrina que corresponde exatamente às aspirações e as exigências do horizonte espiritual, não pode abrir mão da razão, nem mesmo em favor da intuição, que pertence a um período futuro do desenvolvimento humano.
DESENVOLVIMENTO DA RAZÃO - O horizonte profético assinalou a fase culminante de desenvolvimento da razão. Já tivemos ocasião de estudar os motivos dessa ocorrência, no vasto período histórico que vai do IX ao III século antes de Cristo, segundo a teoria de John Murphy, Resta-nos apreciar a maneira por que a razão vai progressivamente impondo os seus direitos, até conquistar a supremacia necessária, para libertar o espírito humano dos liames terríveis do passado.
Podemos observar com segurança o vigoroso surto da razão no horizonte profético, a começar da própria agitação profética na Palestina. Os conquistadores de Canaã carregavam no espirito a herança das civilizações mesopotâmica e egípcia. Os germes da razão estavam bem desenvolvidos naquelas mentes inquietas, que procuravam construir um novo mundo para si mesmas e anunciar aos demais povos o advento de uma nova ordem. Mas foram os profetas de Israel os corifeus desse movimento renovador, quer levantando sua voz contra o apego aos velhos hábitos, quer anunciando com insistência a aproximação dos novos tempos.
Os debates teológicos de Israel aparecem como uma preparação da efervescência medieval. Os profetas agitam a pasmaceira teológica do povo eleito, propondo questões que perturbam a própria ordem social. Ao mesmo tempo, na Grécia, a filosofia se desprende da sua matriz órfica, supera o pensamento místico do orfismo tradicional, e ensaia os primeiros passos da perquirição racional. Na própria China estagnada surge a inquietação provocada pela introdução do Budismo e pelo aparecimento do Confucionismo. Na Índia védica, submetida ao jugo das tradições, a renovação budista mistura-se às influências procedentes do pensamento grego, cujo poder de irradiação não conhece barreiras, no Ocidente ou no Oriente. No mundo romano, a infiltração grega submetia as tradições do Império e o politeísmo dominante ao julgamento progressivo, que a contribuição judeu-cristã iria acelerar de maneira decisiva.
O Cristianismo aparece como verdadeiro remate desse vasto processo. Jesus não se limita a condenar o apego ao ritualismo religioso no mundo judaico. Ele proclama a natureza espiritual de Deus, e consequentemente a do homem, filho de Deus. Ensina a universalidade do espírito, rompendo assim as barreiras de todos os preconceitos tribais, que dividiam a humanidade em grupos raciais ou religiosos. Mostra que o samaritano podia ser melhor que um príncipe da igreja judaica, e adverte à mulher samaritana que Deus devia ser adorado, não através de fórmulas exteriores em locais considerados sagrados, mas "em espirito e verdade".
Quando observamos o fenômeno do aparecimento e da propagação do Cristianismo, primeiramente na Palestina, e depois no mundo, verificamos que se tratava de uma verdadeira revolução. Mas a característica dessa revolução é precisamente o apelo à razão. O Cristianismo exigia das criaturas o uso desse poder misterioso do raciocínio, que as fazia senhoras de si mesmas, responsáveis pelos seus atos. Contra a autoridade das Escrituras e dos Rabinos, bem como da própria tradição, Jesus proclamava a soberania da consciência. Limpar o vaso por dentro, e não apenas por fora; servir-se do Sábado, em vez de escravizar-se a ele; orar conscientemente, sabendo que Deus, sendo Pai, não dá pedra a quem lhe pede pão, nem cobra a quem lhe pede peixe.
Os homens ainda não estão preparados para compreender todos os princípios dessa revolução. Continuarão apegados, por muito tempo, aos velhos moldes autoritários, subjugados pelos antigos preceitos. Mas o fermento está lançado na medida de farinha, e inevitavelmente a fará levedar. Os próprios apóstolos não assimilarão suficientemente as lições do Mestre. Procurarão ajustar o Cristianismo aos velhos moldes judaicos, retê-lo nas sinagogas, prendê-la ao templo de Jerusalém. Pedro, o velho pescador, não admitirá cristão que não se submeta a ser circuncidado. Mas Jesus conhece um homem que amadureceu o suficiente para fazer prevalecer a razão sobre o costume, o uso, a tradição. Esse homem é Paulo de Tarso, que promoverá no Cristianismo nascente o movimento vivo de repulsa ao predomínio do passado.
A reforma grega do Orfismo pelo Pitagorismo, a reforma indiana do Hinduísmo pelo Budismo, a reforma chinesa do Taoísmo pelo Confucionismo, e a reforma síria do Judaísmo pelo Cristianismo, eis os grandes eventos históricos que assinalam o advento mundial, no horizonte profético, da era da razão. Pitágoras é o primeiro a ensaiar, na Grécia do século sexto, e no mundo inteiro, a união do pensamento místico ao racional. E a partir dos pitagóricos, o grande drama da evolução humana, durante milênios, se desenvolverá nesse plano: a luta pela racionalização da fé.
A crença pela crença, a fé pela fé, a obrigação e a necessidade de aceitar a tradição, como verdade absoluta, acabada e perfeita, são característicos dos horizontes primitivos, das fases de predomínio do instinto e do sentimento. Na proporção em que a razão se desenvolve, em que o homem aprende a pensar e a julgar, a fé cega, tradicional. Já não pode satisfazê-lo. A fórmula comodista: "Creio porque creio", exigirá um substituto dinâmico e fecundo: "Creio porque sei".
O horizonte profético se encerra com o predomínio da razão.
Ao contrário do que se costuma dizer, a razão não aparece como exclusivamente grega, não obstante a contribuição da Grécia seja a mais decisiva para o seu desenvolvimento. Encontramos, como já vimos acima, o florescimento da razão ao longo de todo o horizonte profético, prenunciando a supremacia mundial que ela deverá assumir, com o advento do horizonte espiritual. Mas haverá ainda uma grande fase histórica de reação, de luta profunda e morosa, entre a razão e a fé, embora aquela tenha de sair triunfante.
O DRAMA MEDIEVAL - A Idade Média é a fase dramática do desenvolvimento da razão. A tentativa pitagórica renova-se nessse vasto e sombrio período da história européia, mas em condições completamente diversas. O Cristianismo nascente recebera, desde a Palestina, um duplo impulso de racionalização: de um lado, a insistência do Cristo em libertar os homens do dogmatismo fideísta dos judeus; de outro, a influência do pensamento grego, bem patente nos próprios evangelhos. "Religião do livro", como mais tarde a chamariam os muçulmanos, penetrou essa nova religião no Império Romano em meio à efervescência da decadência, incentivando e acalorando os debates em torno dos problemas da fé. Mas no próprio Cristianismo a contradição dialética se acentua de maneira ameaçadora. Com o correr do tempo, a fé conseguiu superar sua antagonista, a razão, e submetê-la ao seu império. Nada exprime melhor esse fato do que a fórmula medieval: "A filosofia é serva da teologia.".
Os que ainda hoje acusam o Cristianismo de religião reacionária e obscurantista, em virtude do medievalismo e suas conseqüências, esquecem-se de que foi ele a única religião capaz de incentivar o desenvolvimento da razão, e até mesmo de preservar a herança cultural greco-romana através do período bárbaro. Esquecem-se de que próximo a Nazaré existia a Decápolis grega, e que o próprio nome da nova religião derivou de uma palavra grega. Esquecem-se ainda dos fatos históricos fundamentais do desenvolvimento do Cristianismo na Europa, entre os quais devemos assinalar a aproximação constante com o pensamento grego, o interesse pelas suas contribuições filosóficas, a tentativa de "pensar o evangelho através da lógica grega", e até mesmo a de platonizar e aristotelizar os fundamentos da nova religião.
A reação do fideísmo, entretanto, quase fez recuar o ímpeto da razão. O passado mítico e místico da humanidade pesou fundamente na balança. O próprio Cristo foi transformado em novo mito, e suas expressões alegóricas, empregadas sempre num sentido racional, esclarecedor, converteram-se em dogmas de fé. "O cordeiro que tira o pecado do mundo", imagem explicativa, referente à crença judaica na eficácia mágica do sacrifício de animais; "o resgate dos pecados pelo sangue", alegoria ligada à antiga superstição da era agrária, de purificação pela efusão de sangue; "a transubstanciação do pão e do vinho em corpo e sangue do Cristo", idéia mágica, de sentido alegórico, proveniente dos antigos "Mistérios" das religiões orientais; e assim tantas outras, adquiriram a força de preceitos literais, de ordenações divinas. Ao mesmo tempo, as formas do culto exterior, das religiões pagãs e judaicas, e as próprias festas do paganismo, foram adaptadas à nova religião. O processo de sincretismo religiosos, hoje tão bem conhecido e estudado pelos sociólogos, transformou o Cristianismo em novo domínio do mito e da mística.Apesar de todo esse gigantesco esforço de asfixia da razão, esta, entretanto, continuou a se desenvolver. Submetida ao império da fé, constrangida a servir aos dogmas, em vez de criticá-los, transformada em "serva da teologia", nem por isso a razão pôde ser esmagada. Porque, mesmo para servir ao dogmatismo, ela conseguia agitar e inquietar os espíritos. As heresias surgiram do chão "como cogumelos", segundo a expressão de Tertuliano, e mesmo depois que o principio de usucapião, do direito romano, foi empregado raciionalmente contra a razão, em defesa do fideísmo asfixiante, a razão, continuou a abrir as suas brechas na muralha dogmática. O próprio Tertuliano acabou como herege, e foram muitos os padres e doutores que, embriagados pelo vinho grego da dialética, resvalaram para o abismo das condenações.
A famosa Querela dos Universais, provocada pelo desafio de Porfírio, discípulo de Plotino, marcará a fase decisiva do desenvolvimento da razão, no mais agudo período da consolidação da dogmática medieval. Figuras brilhantes de pensadores cristãos como estrelas perdidas no céu escuro do medievalismo, assinalarão o roteiro da razão, como um traço de giz no quadro negro da época. A partir dos hereges dos quatro primeiros séculos, sufocados pela violência ortodoxa dos que se julgavam herdeiros exclusivos da era apostólica, podemos gizar no quadro uma linha que passa por Agostinho, no século V: por Erígena e Alcuíno, no século VIII; pelo dialético Beranger de Tours, do século IX, que negava a Eucaristia; por Abelardo, com seu "Sic et Non"; pelo trabalho dos "mestre de sentença", entre os quais se destaca Pedro Lombardo; para, afinal chegamos a Tomás de Aquino, que representa a codificação das contradições medievais, com sua "Suma Teológica."
O drama da razão na Idade Média empolga pelos seus lances heróicos, mas ao mesmo tempo assusta, pelo trágico de seus episódios cruéis. Abelardo é uma das figura mais representativas, senão a própria encarnação desse drama. Em pleno século XI, aceitava a supremacia da fé, mas chegou a tentar uma explicação racional do dogma da Trindade, caindo na condenação de heresia. Duas vezes foi condenado pelos Concílios. E para que não faltasse, no simbolismo da sua vida, o colorido das paixões humanas da época, temos o seu romance com Heloísa e o desfecho cruel a que é levado. Dilthey considerou a Idade Média como um caldeirão, em que ferviam as idéias, misturando, num gigantesco processo de fusão, as contribuições do pensamento grego-romano com os princípios judeu-cristãos.
Esse imenso "cozido", que teve de ser preparado através de um milênio, só estaria completo nos albores do século XIV, logo após a codificação da "Suma Teológica".
A luta entre a razão e a fé encontra, portanto, o seu epílogo, na Renascença. Embora tenhamos de reconhecer a sua continuidade, mesmo em nossos dias, a verdade é que ela agora se processa em plano secundário, como simples resíduo natural de épocas superadas. Descartes foi o espadachim que deu o golpe final nesse duelo de milênios. Inspirado pelo Espírito da Verdade, segundo a sua própria expressão, o filósofo do "cógito" libertou a filosofia da servidão medieval e preparou o terreno para o advento do Espiritismo. Mais tarde, Kardec poderia exclamar como vemos no pórtico de O Evangelho Segundo o Espiritismo, que "Fé inabalável é somente aquela que pode encarar a razão face a face, em todas as etapas da humanidade".
O que hoje se condena como racionalismo não é propriamente a razão, mas o absolutismo racional. A luta filosófica que se travou e ainda se trava no nosso tempo já não se refere mais ao problema antigo e medieval de razão e fé, mas às questões modernas, tipicamente metodológicas, de razão e intuição. É uma batalha que se trava no campo da teoria do conhecimento, e não mais no campo da superstição e do dogmatismo fideísta. Para o Espiritismo, essa batalha está superada.
A razão é apenas o instrumento de que o Espírito, o Ser, em sua manifestação temporal se serve para dominar o mundo. A intuição é o processo direto de conhecimento, de que o Espírito dispõe em seu plano próprio de ação - o espiritual - e que desenvolverá no plano material, na proporção em que o dominar pela razão. Mas a importância da razão, no processo evolutivo do homem, como forma de libertação espiritual, jamais poderá ser negada. Ao estudar o Renascimento, compreendemos o papel do racionalismo, na emancipação espiritual do homem, e o motivo por que o Espiritismo não pode abdicar de suas características racionalistas, para realizar a sua missão emancipadora total.
A MATURIDADE ESPIRITUAL - O Renascimento assinala o momento histórico de emancipação espiritual do homem. O processo de desenvolvimento da razão aparece completo, nesse homem novo que, com Descartes, refuta o dogmatismo medieval e proclama os direitos do pensamento. Não importa que o fenômeno cartesiano pertença ao século dezessete quando os albores da nova era já haviam surgido no catorze, no Quatrocento italiano. O processo, como vimos anteriormente vinha de muito antes. Mas assim como Abelardo encarna o drama medieval em todas as suas cores, Descartes é quem encarna a epopéia do Renascimento, a vitória da razão sobre o fideísmo medieval. Nele e através dele é que a razão triunfa para sempre, marcando os rumos de um novo mundo, para a humanidade renovada.
Mas o episódio histórico que assinalará, como verdadeiro marco no tempo, e momento de emancipação espiritual do homem, somente ocorrerá em fins do século dezoito, na efervescência da revolução Francesa. O estabelecimento do Culto da Razão, por Pierre Gaspar Chaumette, com a entronização da bailarina Candeille, da Ópera de Paris, na presença de Robespierre, em 1793, na Catedral de Notre Dame, é um episódio que representa verdadeira invasão do processo histórico pelo mito. Aliás, toda a Revolução Francesa apresenta esse curioso aspecto de uma revivescência mítica em pleno domínio da história. Foi um movimento histórico que se desenrolou no plano da alegoria. Cada uma das suas fases, e ela inteira, no seu conjunto, aparecem como símbolos. Nesse vasto enredo alegórico, o Culto a Razão é a simbologia específica, o episódio lendário, que marca a vitória do homem sobre a lenda e o mito.
Chaumette foi guilhotinado em 1794. Pagou caro e sem demora a ofensa cometida contra os poderes celestes, ao substituir em Notre Dame o culto da Mater Divina pelo da Razão Humana. Assim entenderam, e ainda hoje o entendem, os supersticiosos adversários do progresso espiritual do homem. Mas o sentido do episódio não estava na heresia. Chaumette não era um iconoclasta, nem um profanador de templos. Era apenas um intérprete do momento histórico em que a Razão Humana proclamava a sua libertação da Mater Divina, ou seja, em que o homem se libertava da Fé Dogmática, para usar o raciocínio, duramente conquistado através dos milênios.
Fácil compreender-se o horror que a audácia revolucionária provocou no mundo. A bailarina Candeille foi conduzida à Catedral de Notre Dame sobre um andor, vestida de azul, com barrete frígio na fronte, precedida de um cortejo de moças vestidas de branco, ostentando faixas tricolores. A convenção decidira substituir a religião tradicional por essa religião racionalista, e Robespierre presidiu a cerimônia. Uma estátua do Ateísmo foi queimada durante a festa que se seguiu. A religião de Chaumette era espiritualista, rejeitava o ateísmo e o materialismo. Mas quem poderia entender esse espiritualismo que não se submetia aos dogmas e aos sacramentos? Até hoje, o episódio do Culto da Razão causa arrepios aos próprios historiadores, que passam rapidamente sobre ele. É qualquer coisa de monstruuoso, que deve ser esquecido.
Durante dois meses, Novembro e Dezembro de 1793, o Culto da razão se estendeu pela França. As igrejas foram desprovidas de seus aparatos tradicionais e a Deusa Razão foi entronizada em cerimônias festivas. Carlyle, referindo-se a cerimônia de Notre Dame, exclama indignado que a bailarina Candeille era levada em procissão, e acrescenta: "escoltada por música de sopro, barretes frígios, e pela loucura do mundo". Realmente tudo parecia loucura, naquele momento irreal. A tradição se esboroava. Os ídolos caíam. Bispos e padres renunciavam. Carlyle acentua que surgiram de todos os lados: "curas com suas recém-desposadas freiras". E uma bailarina da Ópera era transformada em deusa, embora apenas de maneira simbólica.
Mas toda essa loucura nada mais era que a reação do espírito contra a asfixia das tradições. Qual o momento de libertação que não traz consigo esses arroubos? Passada, porém, as emoções do início, o coração se acalma e a razão restabelece as suas leis. Por outro lado, a "loucura do mundo", a que Carlyle se refere, pode ser historicamente identificada com a própria razão, pois vemo-la sempre denunciada pelos tradicionalistas, pelos conservadores renitentes, nos momentos cruciais da evolução humana. Os homens velhos, como as castas e os povos envelhecidos - ensina Ingenieros - vivem esclerosados em suas armaduras ideológicas e não podem compreender, senão como loucura, as verdadeiras revoluções sociais, que afetam os interesses estabelecidos e transformam as idéias dominantes.
A vitória da razão, na sua luta milenar contra o obscurantismo fideísta, não podia deixar de parecer um momento de loucura. Porque, desenvolvida através de um laborioso processo de acúmulo de experiências, de geração a geração, de civilização a civilização, o seu crescimento se assemelha ao das plantas que rompem o calçamento das ruas, para afirmar o poder da vida sobre as construções artificiais. Sabemos hoje, pelo aprofundamento que o relativismo crítico realizou na doutrina das categorias, de Kant, que a razão é o sistema dessas categorias vitais, forjadas no processo da experiência sempre renovada. Assim como a planta, rompendo o calçamento, afirma as exigências vitais da natureza, em toda a parte, assim também a razão, violentando as estruturas das velhas convenções, afirma as exigências vitais da consciência humana. A primeira dessas exigências é a liberdade, fundamento e essência do homem, que asfixiada durante um milênio no caldeirão medieval, explodiu com o fragar de uma detonação atômica, no período da Revolução Francesa.
Devemos ainda lembrar que o episódio do Culto da Razão tem o seu lugar no centro de uma linha de acontecimentos históricos. Não foi um caso isolado. Mesmo porque, na história, não existem casos dessa espécie. Já tivemos ocasião de lembrar o antecedente pitagórico da luta medieval entre a razão e a fé. Jérome Carcopino estabeleceu as ligações entre o pitagorismo e o cristianismo primitivo, nos seus estudos sobre a conversão do mundo romano. No período medieval já traçamos a linha que assinala o desenvolvimento dessa luta. Basta que a retomemos agora em Descartes, para vermos a continuidade no mundo moderno. Mas o mais curioso é vermos como essa luta sugeriu, no pensamento francês, tão afeito à síntese, a idéia de uma religião racional, que teve também o seu lento desenvolvimento.
Sem procurarmos entrar em maiores indagações, acentuamos que Descartes fundava o seu racionalismo na inspiração do Espírito da Verdade. Aparente contradição, que mais tarde se esclarecerá. Logo a seguir temos o caso de Espinosa, que estabelece ao mesmo tempo a forma racional de uma interpretação panteísta do cosmos e lança as bases, segundo Huby, "do mais radical racionalismo escriturístico". Dessas tentativas, surgem muitas derivações e paralelismos, que parecem desembocar na Convenção. Clootz propõe que o Deus Único seja o povo, e a Deusa Razão, de Chaumette, levará na mão o cetro de Júpiter-Povo.
Fracassada a tentativa, revolucionária, e retomadas as igrejas, não tardará muito a aparecer a tentativa de Auguste Comte, de fundação da Religião da Humanidade. Nessa linha milenar se insere o racionalismo espírita, que surge com Kardec, em meados do século dezenove, como síntese definitiva de um grande processo histórico. O Espiritismo representa o triunfo decisivo da razão. Não sobre a fé, com a qual se estabelece o equilíbrio, mas sobre o dogmatismo fideísta, que em nome da última asfixiava a primeira.
J. Herculano Pires

19 novembro 2009

HISTÓRIAS DE CHICO

A Bênção da Chuva
Na tarde de 28 de março de 1981, chovia muito em Uberaba.Pacientemente, Chico esperava que o aguaceiro passasse.A copa frondosa do abacateiro oferecia precário abrigo para todos os que ali nos reuníamos ávidos por aprender.A reportagem do programa "Fantástico", da TV Globo, do Rio de Janeiro, filmava tudo de dentro de um carro de aluguel.Como sempre, várias caravanas de diversos Estados, estavam presentes, notadamente de Curitiba, Paraná.A chuva amaina e o Sr. Weaker convida-nos ao início da reunião na Vila dos Pássaros Pretos.A prece, como de hábito, é proferida pelo prof. Thomaz.Chico toma a palavra e explica que o culto se divide em duas partes: a primeira, dos comentários em torno de uma página do Evangelho; a segunda, "o encontro com os amigos que nos hospedam..."."O Evangelho Segundo o Espiritismo" convida-nos a examinar o cap. 25, "Buscai e Achareis".Cada companheiro convidado aos comentários por orientação de Chico, não deve exceder ao tempo de quatro minutos, "para que tenhamos um maior número de opiniões em torno do texto lido".Uma confreira, fazendo uso da palavra, observa que "é pelo trabalho que caminhamos rumo à conquista do amor"; alguém assinala que o trabalho, conjugado à oração, constitui excelente antídoto contra a tentação; por nossa vez, acentuamos que o trabalho longe de ser uma expiação, é uma bênção de Deus. Gasparetto, também presente à tarefa, destaca o trabalho como terapia; D. Zibia Gasparetto, médium de psicografia que todos admiramos, adverte-nos para o trabalho de nos conhecermos intimamente; Langerton, o amigo de Peirópolis, diz que "o trabalho é a nossa âncora"; Márcia comenta que o "ajuda-te" é mensagem para que tenhamos iniciativa própria e que "o céu te ajudará" traduz a confiança que devemos depositar na providência divina...Apesar da chuva, os nossos irmãos carentes, entre eles muitas crianças e velhinhos, não arredaram o pé da fila que daí a instantes seria beneficiada com os óbulos da fraternidade, numa demonstração eloquente de que ali estão por necessidade e não por ociosidade, como divulgam alguns adversários da caridade.Agora, era chegado o grande momento: Chico Xavier, inspirado por Emmanuel, ia falar.Apesar de completamente ensopados, inclusive o Chico molhara-se um pouco, procuramos colocar-nos na máxima condição de receptividade para ouvir.Aos beijos do sol, um arco-íris emoldura o templo da natureza.Chico fala:"Estamos aqui reunidos, sob a chuva, para nos conhecer com mais segurança. Estamos numa hora de confrontação...Quantos não gostariam de estar trabalhando sob a chuva? Quantos enfrentam o problema da terra ressequida? A calamidade da seca é comparável a dos terremotos. Há mais de dois anos não chovia em sete Estados da Federação. Em João Molevade, Minas Gerais, centenas de operários lidam com o aço em fogo, nas grutas. Eu conheço moças que trabalham em boates para sustentar mães que estão em sanatórios....os que trabalham no clima da calúnia, em busca do numerário para obtenção do pão de cada dia...Nós não vamos esquecer essa chuva como lição-advertência.Hoje vamos retornar aos nossos lares com um conhecimento mais amplo de uns para com os outros...Pela primeira vez, há quinze dias, aconteceu um desastre com algumas companheiras nossas quando retornavam a São Paulo, após orarmos no Grupo Espírita da Prece. Muitos, certamente, irão falar...Mas estarão se esquecendo de agradecer os milhares de reuniões, dos dias em que não houve nada...A chuva é uma amiga que também veio enfeitar o nosso culto, para termos a sensação dos que estão debaixo das pontes, dos casebres, dos andarilhos...Esta, ao meu ver - encerrou o Chico - é a nossa maior lição desta tarde".Sim, não havia o que reclamar.E a chuva, na voz de Chico Xavier, transformara-se em lição.A água das nuvens lavara-nos o exterior, mas a água dos Céus carreara, com o enxurro, mais alguns dos detritos que enodoam as nossas almas.
(Do livro "Chico Xavier, à Sombra do Abacateiro", de Carlos Baccelli).

17 novembro 2009

TERREMOTO ESPIRITUAL

A avançada tecnologia conseguiu construir sismógrafos ultra-sensíveis que detectam os mais leves movimentos de adaptação das placas terrestres, que podem ser medidos pela escala Richter, estabelecendo a sua intensidade. Não obstante esse extraordinário logro, não é possível à inteligência humana prever onde acontecerá o fenômeno perturbador, ou mesmo impedir a sua manifestação.
Tentando evitar tão desastrosa ocorrência, geólogos hábeis, utilizando-se de satélites especialmente equipados para o mapeamento da intimidade do planeta, recorrendo a raios infravermelhos e outros que podem alcançar as estruturas mais profundas, conseguiram identificar as falhas mais perigosas, como outras de menor monta, acompanhando com cuidadosa argúcia as alterações que ocorrem com o tempo, em tentativas de minimizar-lhes a ameaça de destruição. Todavia, periodicamente, sem qualquer prevenção, erupções vulcânicas produzem ressonâncias em várias regiões e terremotos devastadores assolam diferente áreas, reduzindo tudo a pó e destroços.
A inteligência humana, urbanizando lugares inóspitos, alteram-lhes a topografia e erguem cidades de expressiva beleza, lançando pontes grandiosas que atravessam lagos, pântanos e mares, facilitando a comunicação entre diferentes pontos terrestres.
Engenheiros civis e de cálculo constróem edifícios incomparáveis, alcançando as nuvens, e tomam providências para serem evitados desastres sísmicos, utilizando material e tecnologia invulgar.
Recentemente, as torres gêmeas Petronas, de Kuala Lumpar, na Malásia, atingiram a invejável altura de 452 metros, tornando-se o edifício mais alto do mundo...
O empenho humano para vencer as condições adversas que produzem os terremotos, como outros flagelos, é credor do maior respeito e consideração. Apesar disso, a agressão do próprio homem ao ecossistema estarrece, contribuindo para a morte, antes lenta e agora acelerada do planeta que habita, caso providências urgentes não o tornem consciente de sua responsabilidade.
Enquanto o ingente esforço de cientistas e tecnólogos, de estudiosos e trabalhadores cuida da beleza e comodidade externa da Terra, as paixões dissolventes oxidam os sentimentos, como ferrugem corrosiva emperrando equipamentos importantes.
A vulgaridade e o despudor alcançam índices jamais igualados e uma nuvem de miasmas morais intoxica as criaturas, enlouquecendo-as, atirando-as em abismos de dor e de sombra.
O materialismo e o utilitarismo dão-se as mãos e desgovernam as mentes e os corações, que perdem as diretrizes do comportamento, tombando em exaustão nas suas masmorras sem grades, porém, cruéis, de onde não há meio possível de fácil evasão...
Numa análise perfunctória, parece que o caos moral cresce ao lado das conquistas da comodidade e do poder, face à truculência, à bestialidade e ao horror que se desenvolvem e expandem, quase a passe de mágica.
É claro que não se podem ignorar, nesse, báratro, as realizações nobilitantes, as conquistas salvadoras e os passos gigantescos para o encontro com a vida fora da Terra...
São consideráveis os sacrifícios dos idealistas, de todos aqueles que promovem o progresso. No entanto, as hórridas ameaças morais vicejam ao lado, contrabalançando negativamente as elevadas realizações.
Numa revisão histórica, verificamos que, das maravilhas do mundo antigo, somente as pirâmides do Egito permaneceram até então.
O Colosso de Rodes, por exemplo, desapareceu nas águas do mar, após terremoto... e dos Jardins de Samíramis e dos Muros da Babilônia, do Farol de Alexandria, de 400 pés de altura, também varrido do solo, do Túmulo de Mausolo, do Templo de Artêmis em Éfeso, da Estátua de Zeus Olímpico, de Fídias, somente ficaram pedras calcinadas pelo tempo, demonstrando a fragilidade das construções humanas...
Na atualidade podem ser contempladas as suntuosas catedrais que foram erguidas no passado, os palácios e museus formidandos, assim como os edifícios modernos de incomparável beleza e luxo, os cassinos inigualáveis, os monumentos e obras de arte não superados, os engenhos da eletrônica e da cibernética, exaltando a glória da mente que voa no rumo do Infinito...
Concomitantemente, o despautério, a miséria, a hediondez dos vícios das drogas, do sexo, do medo e do pânico, da loucura e da insatisfação, aparecem com predominância, porque, esse ser humano, ainda não se identificou com o Herói Crucificado, o Construtor da Terra, que veio, mas não foi ouvido sequer, nem recebido.
Em Jerusalém, no passado, ante a exclamação dos discípulos emocionados pela grandeza do Templo da Salomão, suas pedras colossais, sua porta extraordinária, suas colunas majestosas seus átrios luminosos, Ele respondeu com tristeza na voz:
— Em verdade vos digo que não ficará pedra sobre pedra, que não seja derrubada.
E o vaticínio aconteceu, permanecendo a área vazia da antiga e opulenta construção, de alguma coberta com novos edifícios sagrados .
Foram as guerras que se responsabilizaram por fazê-lo, como em muitos outros lugares, qual sucedeu com a Acrópole - ainda teimosamente em pé -, o Areópago, totalmente destruído, e outros...
Sobre essa paisagem trabalhada pelo homem, no entanto, pairam profecias sobre acontecimentos desastrosos, cuja concretização poderá ser evitada, se forem alteradas as condutas mental, moral e comportamental - a força que contribuirá para o equilíbrio do planeta e movimento sem choques das suas placas -, diluindo o anúncio das terríveis tragédias que poderão ocorrer.
Graças ao Espiritismo, vem acontecendo um terremoto que os sismógrafos não conseguiram detectar, mas que o psiquismo vem captando e dando-lhe curso - o de natureza espiritual.
Suave, a princípio, depois irrompendo de forma expressiva, irá derrubar os castelos de sonhos e de pesadelos do materialismo, do utilitarismo perverso, que cederão lugar à fraternidade verdadeira, à solidariedade legítima e ao amor sem fronteiras.
Tremem os alicerces dessas antigas construções que albergam o existencialismo e a negação de Deus, da alma e da Divina Justiça, estimulando ao gozo e à anarquia dos valores éticos.
Sopra já uma brisa de esperança sobre os escombros da mentalidade desvairada, que se desconecta ante as alterações provocadas pelo terremoto espiritual, encarregado de mudar as estruturas do pensamento anterior e ainda vigente, que tem retardado o crescimento moral da sociedade.
Esse está sendo o mais notável acontecimento da humanidade, nos tempos hodiernos, que assinalará época, porque renovará por completo as bases sociais e humanas do comportamento, abrindo espaço para um mundo novo e feliz.
Esse terremoto espiritual, que decorre da vivência digna da mediunidade, pode ser considerado como ajustador das placas colossais, que se movem e se chocam nas camadas profundas do inconsciente do ser, que se libertará dos vulcões do desespero, permitindo que surjam em toda parte as planícies da paz imorredoura, sob o canto sublime das vozes dos imortais.
Enquanto o ingente esforço de cientistas e tecnólogos, de estudiosos e trabalhadores cuida da beleza e comodidade externa da Terra, as paixões dissolventes oxidam os sentimentos, como ferrugem corrosiva emperrando equipamentos importantes.

Leopoldo Machado (espírito )
*Página psicografada pelo médium Divaldo P. Franco, em 01/07/1998. No Centro Espírita Caminho da Redenção, em Salvador - BA.

16 novembro 2009

A RAZÃO DE SER DO ESPIRITISMO

Quando o obscurantismo da fé dominava as mentes, levando-as ao fanatismo desestruturador da dignidade e do comportamento; quando a cultura, enlouquecida pelas suas conquistas no campo da ciência de laboratório, proclamava a desnecessidade de qualquer preocupação com Deus e com a alma, face à fragilidade com que se apresentavam no proscênio do mundo; quando a filosofia divagava pelas múltiplas escolas do pensamento, cada qual mais arrebatadora e irresponsável, inculcando-se como portadora da verdade que liberta o ser humano de todos os atavismos e limitações; quando a arte rompia as ligações com o clássico, o romântico e a beleza convencional, para expressar-se em formulações modernistas, impressionistas, abstracionistas, traduzindo, ora a angústia da sua geração remanescente dos atavismos e limitações do passado, ora a ansiedade por diferentes paradigmas de afirmação da realidade; quando se tornavam necessários diversos comportamentos sociais e políticos para amenizar a desgraça moral e econômica que avassalava a Humanidade; quando a religião perdia o controle sobre as consciências e tentava rearticular-se para prosseguir com os métodos medievais ultramontanos e insuportáveis; quando as luzes e as sombras se alternavam na civilização, surgiu o Espiritismo com a sua razão de ser para promover o homem e a mulher, a vida e a imortalidade, o amor e o bem a níveis dantes jamais alcançados.
Realizando uma revolução silenciosa como poucas jamais ocorridas na História, tornou-se poderosa alavanca para o soerguimento do ser humano, retirando-o do caos do materialismo a que se arrojara ou fora atirado sem a menor consideração, para que adquirisse a dignidade ética e cultural, fundamentada na identificação dos valores morais, indispensável para a identificação dos objetivos essenciais e insuperáveis da paz interna e da consciência de si mesmo durante o trânsito corporal.
Logo depois, no Collège de France, proclamando ser Jesus um homem incomparável, no seu memorável discurso, o acadêmico e imortal Ernesto Renan confirmava, a seu turno, embora sem qualquer contato com a Doutrina nascente, a humanidade do Rabi galileu, rompendo a tradição dogmática do Homem Deus ou do ancestral Deus feito homem.
Sob a ação do escopro inexorável das informações de além-túmulo, o decantado repouso ou punição eterna, o arbitrário julgamento mais punitivo que justiceiro, cediam lugar à consciência da vida exuberante que prossegue morte afora impondo a cada qual a responsabilidade pela conduta mantida durante a trajetória encerrada.
As narrações da sobrevivência tocadas pela legitimidade dos fatos fundamentadas na lógica da indestrutibilidade do ser espiritual, davam colorido diferente às paisagens da Eternidade, diluindo as fantasias e mitos que as adornaram por diversos milênios.
Permitiu que o ser humano se redescobrisse como Espírito imortal que é, preexistente ao berço e sobrevivente ao túmulo, facultando-lhe compreender a finalidade existencial, que é imergir no oceano do inconsciente, onde dormem os atos pretéritos e as construções que projetam diretrizes para o momento e o futuro, a fim de diluir as volumosas barreiras de sombra e de crueldade a que se entregou e que lhe obnubila a compreensão da sua realidade, emergindo em triunfo, para que lobrigue a imarcescível luz da verdade que o há de conduzir pelos infinitos roteiros do porvir.
Intoxicado pelos vapores da organização fisiológica, mergulhado em sombras que lhe impedem o discernimento, vagando pelos dédalos intérminos da busca da realidade, somente ao preço da fé raciocinada e lógica, portadora dos instrumentos que se derivam dos fatos constatados, o homem e a mulher podem avançar com destemor pelas trilhas dos sofrimentos inevitáveis, que são inerentes à sua condição de humanidade, vislumbrando níveis mais nobres que devem ser conquistados.
O Espiritismo traçou novos programas para a compreensão da vida e a mais eficazmaneira de enfrentá-la, desafiando o materialismo no seu reduto e os materialistas no seu cepticismo, oferecendo-lhes mais seguras propostas de comportamento para a felicidade ante as vicissitudes do processo existencial.
Não se compadecendo da presunção dos vazios de sentimento e soberbos de conhecimentos em ebulição de idéias, demonstrou a sua força arrastando desesperados que foram confortados, violentos que se acalmaram, alucinados que recuperaram a razão, delinqüentes que volveram ao culto do dever, perversos que se transformaram, ateus que fizeram as pazes com Deus, ingratos que se reabilitaram perante os seus benfeitores, miseráveis morais que se enriqueceram de esperança e de alegria de viver, construindo juntos o mundo de bem-estar por todos anelado.
O Espiritismo trouxe a perfeita mensagem da justiça divina, por enquanto mal traduzida pela consciência humana, contribuindo para a transformação da sociedade, mas sem a revolução sangrenta das paixões em predomínio, que sempre impõe uma classe poderosa sobre as outras que são debilitadas à medida que vão sendo extorquidos os seus parcos recursos até a exaustão das suas forças, quando novas revoluções do mesmo gênero explodem, produzindo desgraça e ódios que nunca terminam . . .
Trabalhando a transformação moral do indivíduo, propõe-lhe o comportamento solidário e fraternal, a aplicação da justiça corretiva e reeducativa quando delinqüi, conscientizando-o de que as suas ações serão também os seus juízes e que não fugirá de si mesmo onde quer que vá.
Todo esse contributo moral foi retirado do Evangelho de Jesus, especialmente do Seu Sermão da montanha, no qual reformulou os valores humanos até então aceitos, demonstrando que forte não é o vencedor de fora, mas aquele que se vence a si mesmo, e poderoso, no seu sentido profundo, não é aquele que mata corpos, mas não é capaz de evitar a própria morte.
Revolucionando o pensamento ético e abrindo espaço para novo comportamento filosófico, a Sua palavra vibrante e a Sua vivência inigualável, colocaram as pedras básicas para o Espiritismo no futuro alicerçar, conforme ocorreu, os seus postulados morais através da ética do amor sob qualquer ponto de vista considerado.
Nos acampamentos de lutas que se estabeleciam no Século XIX, quando a ciência e a razão enfrentavam a fé cega e a prepotência das Academias e dos seus membros fascinados como Narciso por si mesmo, o Espiritismo surgiu como débil claridade na noite das ambições perturbadoras e lentamente se afirmou como amanhecer de um novo dia para a Humanidade já cansada de aberrações de conduta como fugas da realidade e sonhos de poder transitório, transformados em pesadelos de guerras infames, cujas seqüelas ainda se demoram trucidando vidas e dilacerando sentimentos.
A razão de ser do Espiritismo encontra-se na sua estrutura doutrinária, diversificada nos seus aspectos de investigação científica ao lado das demais correntes da ciência, do comportamento filosófico com a sua escola otimista e realista para o enfrentamento do ser consigo mesmo e da vivência ético-moral-religiosa que se estrutura em Deus, na imortalidade, na justiça divina, na oração, na ação do bem e sobretudo do amor, única psicoterapia preventiva-curativa à disposição da Humanidade atual e do futuro.

Victor Hugo (espírito)
(Página psicografada pelo médium Divaldo P. Franco, no dia 7 de junho de 2001, em Paris, França)

13 novembro 2009

SINTOMAS DE MEDIUNIDADE

A mediunidade é faculdade inerente a todos os seres humanos, que um dia se apresentará ostensiva mais do que ocorre no presente momento histórico.
À medida que se aprimoram os sentidos sensoriais, favorecendo com mais amplo cabedal de apreensão do mundo objetivo, amplia-se a embrionária percepção extrafísica, ensejando o surgimento natural da mediunidade.
Não poucas vezes, é detectada por características especiais que podem ser confundidas com síndromes de algumas psicopatologias que, no passado, eram utilizadas para combater a sua existência.
Não obstante, graças aos notáveis esforços e estudos de Allan Kardec, bem como de uma plêiade de investigadores dos fenômenos paranormais, a mediunidade vem podendo ser observada e perfeitamente aceita com respeito, face aos abençoados contributos que faculta ao pensamento e ao comportamento moral, social e espiritual das criaturas.
Sutis ou vigorosos, alguns desses sintomas permanecem em determinadas ocasiões gerando mal-estar e dissabor, inquietação e transtorno depressivo, enquanto que, em outros momentos, surgem em forma de exaltação da personalidade, sensações desagradáveis no organismo, ou antipatias injustificáveis, animosidades mal disfarçadas, decorrência da assistência espiritual de que se é objeto.
Muitas enfermidades de diagnose difícil, pela variedade da sintomatologia, têm suas raízes em distúrbios da mediunidade de prova, isto é, aquela que se manifesta com a finalidade de convidar o Espírito a resgates aflitivos de comportamentos perversos ou doentios mantidos em existências passadas. Por exemplo, na área física: dores no corpo, sem causa orgânica; cefalalgia periódica, sem razão biológica; problemas do sono - insônia, pesadelos, pavores noturnos com sudorese -; taquicardias, sem motivo justo; colapso periférico sem nenhuma disfunção circulatória, constituindo todos eles ou apenas alguns, perturbações defluentes de mediunidade em surgimento e com sintonia desequilibrada. No comportamento psicológico, ainda apresentam-se: ansiedade, fobias variadas, perturbações emocionais, inquietação íntima, pessimismo, desconfianças generalizadas, sensações de presenças imateriais - sombras e vultos, vozes e toques - que surgem inesperadamente, tanto quanto desaparecem sem qualquer medicação, representando distúrbios mediúnicos inconscientes, que decorrem da captação de ondas mentais e vibrações que sincronizam com o perispírito do enfermo, procedentes de Entidades sofredoras ou vingadoras, atraídas pela necessidade de refazimento dos conflitos em que ambos - encarnado e desencarnado - se viram envolvidos.
Esses sintomas, geralmente pertencentes ao capítulo das obsessões simples, revelam presença de faculdade mediúnica em desdobramento, requerendo os cuidados pertinentes à sua educação e prática.
Nem todos os indivíduos, no entanto, que se apresentam com sintomas de tal porte, necessitam de exercer a faculdade de que são portadores. Após a conveniente terapia que é ensejada pelo estudo do Espiritismo e pela transformação moral do paciente, que se fazem indispensáveis ao equilíbrio pessoal, recuperam a harmonia física, emocional e psíquica, prosseguindo, no entanto, com outra visão da vida e diferente comportamento, para que não lhe aconteça nada pior, conforme elucidava Jesus após o atendimento e a recuperação daqueles que O buscavam e tinham o quadro de sofrimentos revertido.
Grande número, porém, de portadores de mediunidade, tem compromisso com a tarefa específica, que lhe exige conhecimento, exercício, abnegação, sentimento de amor e caridade, a fim de atrair os Espíritos Nobres, que se encarregarão de auxiliar a cada um na desincumbência do mister iluminativo.
Trabalhadores da última hora, novos profetas, transformando-se nos modernos obreiros do Senhor, estão comprometidos com o programa espiritual da modificação pessoal, assim como da sociedade, com vistas à Era do Espírito imortal que já se encontra com os seus alicerces fincados na consciência terrestre.
Quando, porém, os distúrbios permanecerem durante o tratamento espiritual, convém que seja levada em conta a psicoterapia consciente, através de especialistas próprios, com o fim de auxiliar o paciente-médium a realizar o autodescobrimento, liberando-se de conflitos e complexos perturbadores, que são decorrentes das experiências infelizes de ontem como de hoje.
O esforço pelo aprimoramento interior aliado à prática do bem, abre os espaços mentais à renovação psíquica, que se enriquece de valores otimistas e positivos que se encontram no bojo do Espiritismo, favorecendo a criatura humana com alegria de viver e de servir, ao tempo que a mesma adquire segurança pessoal e confiança irrestrita em Deus, avançando sem qualquer impedimento no rumo da própria harmonia.
Naturalmente, enquanto se está encarnado, o processo de crescimento espiritual ocorre por meio dos fatores que constituem a argamassa celular, sempre passível de enfermidades, de desconsertos, de problemas que fazem parte da psicosfera terrestre, face à condição evolutiva de cada qual.
A mediunidade, porém, exercida nobremente se torna uma bandeira cristã e humanitária, conduzindo mentes e corações ao porto de segurança e de paz.
A mediunidade, portanto, não é um transtorno do organismo. O seu desconhecimento, a falta de atendimento aos seus impositivos, geram distúrbios que podem ser evitados ou, quando se apresentam, receberem a conveniente orientação para que sejam corrigidos.
Tratando-se de uma faculdade que permite o intercâmbio entre os dois mundos - o físico e o espiritual - proporciona a captação de energias cujo teor vibratório corresponde à qualidade moral daqueles que as emitem, assim como daqueloutros que as captam e as transformam em mensagens significativas.
Nesse capítulo, não poucas enfermidades se originam desse intercâmbio, quando procedem as vibrações de Entidades doentias ou perversas, que perturbam o sistema nervoso dos médiuns incipientes, produzindo distúrbios no sistema glandular e até mesmo afetando o imunológico, facultando campo para a instalação de bactérias e vírus destrutivos.
A correta educação das forças mediúnicas proporciona equilíbrio emocional e fisiológico, ensejando saúde integral ao seu portador.
É óbvio que não impedirá a manifestação dos fenômenos decorrentes da Lei de Causa e Efeito, de que necessita o Espírito no seu processo evolutivo, mas facultará a tranqüila condução dos mesmos sem danos para a existência, que prosseguirá em clima de harmonia e saudável, embora os acontecimentos impostos pela necessidade da evolução pessoal.
Cuidadosamente atendida, a mediunidade proporciona bem-estar físico e emocional, contribuindo para maior captação de energias revigorantes, que alçam a mente a regiões felizes e nobres, de onde se podem haurir conhecimentos e sentimentos inabituais, que aformoseiam o Espírito e o enriquecem de beleza e de paz.
Superados, portanto, os sintomas de apresentação da mediunidade, surgem as responsabilidades diante dos novos deveres que irão constituir o clima psíquico ditoso do indivíduo que, compreendendo a magnitude da ocorrência, crescerá interiormente no rumo do Bem e de Deus.
Manoel P. de Miranda(espírito)
(Página psicografada pelo médium Divaldo P. Franco, no dia 10 de julho de 2000, em Paramirim, Bahia).

11 novembro 2009

A CABANA E O SALÃO


Revista Espírita, dezembro de 1862
Estudo de costumes espíritas.
Reencontramos, em nossa correspondência antiga, a carta seguinte, que vem a propósito depois do artigo precedente.

Paris, 29 de julho de 1860.
Senhor, tomo a liberdade de vos comunicar as reflexões que me sugeriram dois fatos observados por mim mesmo, e que poderiam' corretamente, penso, ser qualificados de estudos de costumes espíritas. Vereis por aí que os fenômenos morais não são sem valor para mim; depois que me entreguei ao estudo do Espiritismo, parece-me que vejo cem vezes mais coisas do que antes; tal fato ao qual não teria dado nenhuma atenção, leva-me hoje a refletir; eu estou, poderia dizer, diante de um espetáculo perpétuo, onde cada indivíduo tem o seu papel, e me oferece um enigma a decifrar; é verdadeiro dizer que os há tão fáceis quando se possui a admirável chave do Espiritismo, que não se tem grande mérito; mas não oferecem senão mais interesse, porque com o Espiritismo encontra-se como num país no qual se compreende a língua. Tornei-me meditativo e observador, porque tudo para mim agora tem a sua causa; os mil e um fatos que outrora me pareciam o produto do acaso e passavam por mim desapercebidos, hoje têm sua razão de ser e sua utilidade; um nada, na ordem moral, atrai minha atenção e me é uma lição. Mas esqueço que é a propósito de uma lição que quero conversar convosco. Sou professor de piano; há algum tempo, indo à casa de uma de minhas alunas que pertence a uma família da sociedade, entrei na portaria, não me lembrando mais por qual motivo. É uma senhora de mão fechada sobre o quadril, que não foi desqualificada nem no físico e nem no moral, ocupando um quarto de porteiro. Eu a vi repreender de importância sua filha, menina de uns quinze anos, cujas maneiras fazem um contraste evidente com a mãe. "Que fez, pois, a senhorita Justine, disse-lhe, para excitar a esse ponto vossa cólera? - Não me faleis disso, senhor, essa resmungona se achou de dar-se ares de duquesa! A senhorita não gosta de lavar a louça; ela acha que isso lhe estraga as mãos, que isso cheira mal, ela que foi educada com as vacas na casa de sua avó; teme de lhe sujar as unhas; e são necessárias essências em seu lenço! Dar-te-ei essências, eu!" Ali, uma vigorosa bofetada fá-la recuar quatro passos. "Ah! é que, vede, meu pequeno senhor, é preciso corrigir as crianças quando são jovens; jamais estraguei os meus, todos os meus rapazes são bons operários, será preciso que esta mulher afetada e ridícula perca seus ares de grande dama." Depois de ter dado alguns conselhos de doçura à mãe e de docilidade à filha, subi para minha aluna sem dar importância a essa cena de família. Lá, por uma singular coincidência, vi a contrapartida. A mãe, mulher da sociedade e de boas maneiras, ralhava também com sua filha, mas por um motivo todo oposto. "Mas, dominai-vos, pois, como é preciso, Sophie, dizia-lhe; tendes um verdadeiro jeito de cozinheira; isso não é de admirar, tendes uma predileção toda particular pela cozinha, onde parece terdes maior prazer do que no salão.
Eu vos asseguro que Justine, a filha do porteiro, vos faria vergonha; verdadeiramente, dirse-ia que vos transformastes em ama-de-leite."
Jamais dera atenção a essas particularidades; foi preciso aproximar as duas cenas para me fazer notá-las. A senhorita Sophie, minha aluna, é uma jovem de dezoito anos, bastante bonita, mas seus traços têm alguma coisa de vulgar; todas as suas maneiras são comuns e sem distinção; seu jeito, seus movimentos têm alguma coisa de pesado e de desajeitado; ignorava seus pendores para a cozinha. Pus-me então a compará-la à pequena Justine de instinto tão aristocráticos, e me perguntava se não estava ali um exemplo surpreendente
das tendências inatas, uma vez que, nessas duas jovens, a educação foi impotente para modificá-las. Por que uma, elevada ao seio da opulência e do bom tom, tem gostos e maneiras vulgares, ao passo que a outra que, desde sua infância, viveu no meio mais rústico, tem o sentimento da distinção e das coisas delicadas, apesar das correções de sua mãe para fazer-lhe perder o hábito? Ó filósofos! que quereis sondar as dobras do coração humano, explicai, pois, esses fenômenos sem as existências anteriores; para mim, é indubitável que essas duas jovens têm os instintos daquilo que foram. Que pensais disto,caro mestre?
Aceitai, D.......
Pensamos que a senhorita Justine, a porteira, podia bem ser uma variante do que disse Charles Fourier: 'Vêem-se todos os dias pessoas irem pedir a caridade à porta dos castelos dos quais foram as proprietárias em suas vidas precedentes." Quem sabe se a senhorita Justine não foi a senhora nessa mansão, e a senhorita Sophie, a grande senhora, sua porteira? Esta idéia é revoltante para certas pessoas que não podem se dar a pensar terem podido ser menos do que são hoje, ou de se tornarem criados de seus criados; por que então em que se tornam a raça de puro sangue, que se tomou tanto cuidado em não casar
em desigualdade? Consolai-vos; o sangue de vossos antepassados pode correr em vossas veias, porque o corpo procede do corpo. Quanto ao Espírito, é outra coisa; mas o que fazer se é assim? Não é porque um homem esteja contrariado com a chuva que isso impedirá de chover. É humilhante, sem dúvida, pensar que o senhor possa se tornar servidor, e o rico, mendigo; mas nada é mais fácil do que impedir que isso seja assim; não há senão que não ser vão e orgulhoso, e não se será rebaixado; de ser bom e generoso, e não se será reduzido a pedir o que se recusou aos outros. Ser punido por onde se pecou, não é a mais justa das justiças? Sim, de grande se pode tornar pequeno, mas quando se foi bom não
pode-se tornar mau; ora, não vale mais ser um honesto proletário do que um rico vicioso?

07 novembro 2009

RUPTURA DOS ARCABOUÇOS RELIGIOSOS

FRAGMENTAÇÃO DA IGREJA

A partir da rebelião luterana, os arcabouços religiosos medievais cederam ao impacto do espírito renovador. A Igreja fragmentou-se. Rompidos os arcabouços, o edifício gigantesco ameaçou ruir. Aquilo que Erasmo temia, verificou-se de maneira inapelável. Durante séculos, o mundo não gozaria mais da unidade religiosa, e consequentemente, da "pax romana" da Idade Média. A timidez de Erasmo, os seus excessos de prudência, não lhe haviam deixado perceber o sentido profundo das próprias palavras evangélicas, atribuídas ao Cristo: "Não julgueis que vim trazer paz à terra; não vim trazer-lhe a paz, mas a espada". (Mateus, X: 34.) Ou ainda: "Eu vim trazer fogo à Terra, e que mais quero, senão que ele se acenda?"( Lucas, XII: 49).
A mesma espada que dividiu os judeus na era apostólica, a partir da pregação do Cristo, o mesmo fogo que lavrou no seio do Judaísmo, devastando a sua unidade apática, haviam também de dividir os cristãos e calcinar o dogmatismo fideísta da nova estagnação religiosa. A "religião estática" cederia lugar aos impulsos revitalizadores da "religião dinâmica", desse "élan vital" que teria de romper as estruturas materiais, para que a "religião em espírito e verdade" pudesse triunfar dos formalismos dominantes. Lutero sentia profundamente essa verdade, embora ainda não pudesse compreendê-la em plenitude. Erasmo a compreendeu, mas não a sentiu com a intensidade suficiente para impulsioná-lo à ação. Esse desajuste, entretanto, era necessário ao desenvolvimento do processo histórico, que não poderia prescindir das fases que caracterizam o desenrolar da história.
A revolução luterana consolidou-se com o código de vinte e oito artigos da Confissão de Augsburg, elaborado por Melanchton, e expandiu-se rapidamente pela Alemanha e os países nórdicos, tornando-se religião estatal. Lutero pretendia substituir os símbolos medievais pela verdade evangélica, substituir o aparelhamento do culto pela presença do Cristo. Era um impulso decisivo de volta às origens cristãs. Mas as próprias circunstâncias apresentavam obstáculos diversos a esse retorno ideal. O luteranismo não conseguiu abolir completamente a simbólica religiosa do catolicismo-romano e terminou adaptando uma parte da mesma. Conservou os três sacramentos que considerava fundamentais: o batismo, a comunhão e a penitência, e manteve a organização sacerdotal. Mas o mais curioso da Reforma foi à substituição de uma idolatria por outra. Em lugar dos ídolos, das relíquias, do instrumental variado do culto, do dogmatismo dos concílios e da autoridade papal, o luteranismo consagrou a idolatria da letra, a infalibilidade dos textos sagrados.
Paulo, o apóstolo, já havia ensinado que a letra mata e somente o espírito vivifica. Mas também a liberdade subitamente conquistada pode matar. Livrando-se do peso morto dos ídolos materiais que atravancam a religião medieval, os reformadores da Renascença deviam apegar-se forçosamente a alguma coisa. Essa nova base, sobre a qual deviam firmar-se para prosseguir na luta, foi a "Palavra de Deus", consubstanciada nos textos da Escritura. A Reforma estabeleceu o império do literalismo, o domínio da letra. Jamais o Cristianismo europeu fizera tanto jus à denominação da "religião do livro", que os maometanos lhe haviam dado. Nos templos reformados, a Bíblia substituiu a imagem. É fácil compreendermos que um grande passo estava dado, pois libertar a letra era a medida indispensável para conseguir-se a libertação do espírito, nela encerrado.
O "verdadeiro evangelho", de que Erasmo falara a Frederico da Saxônia, surgiu sobre a Europa nas múltiplas traduções para as línguas nacionais, a partir da germânica. Os textos ocultos, até então privilégio dos clérigos eram retirados das criptas e oferecidos ao povo, que os recebia com sofreguidão. A possibilidade de contato direto com a Escritura, o direito de sentir o seu poder inspirador nos próprios textos, sem as interpretações clericais, eis a novidade que abalava o Cristianismo e abria perspectivas imprevisíveis para o seu desenvolvimento. Foi essa a missão espiritual da Reforma. Sem o florescimento da seara cristã, sem essa floração magnífica do Evangelho, por toda parte, não poderiam chegar ao tempo dos frutos e da colheita, que viria mais tarde, quando se cumprisse a Promessa do Consolador.
Na França e na Suíça, Zwinglio e Calvino se incumbiram de dar prosseguimento à Reforma, que se estendeu rapidamente aos Países Baixos e à Escócia. Calvino parece ter sentido ainda, mais fundamento que Lutero, a necessidade de libertar o Cristianismo da asfixia dos símbolos. Apegou-se, entretanto, ao dogma da predestinação, e seu fanatismo atingiu às raias da brutalidade, com terríveis episódios de violência. Não obstante, sua contribuição resultou no vigoroso surto do liberalismo protestante, iluminado pela influência do criticismo kantiano. Na Inglaterra, a libertação do domínio papal, efetuada por Henrique VIII e consolidada pela rainha Elisabete, não chegou a atingir a profundidade das reformas de Lutero e Calvino. A igreja Anglicana, dominada pelo soberano nacional, conservou enorme acervo da herança medieval.
De qualquer maneira, a reforma estendeu-se por toda parte, deitou raízes na América, e obrigou a Igreja a também se reformar, através do Concílio de Trento, em suas três sessões sucessivas. O movimento da Contra-Reforma apresentou duas faces contraditórias: uma negativa, com a instituição do Santo Ofício, o estabelecimento da Inquisição; outra positiva, com o trabalho educacional da Companhia de Jesus. A primeira face correspondia à indignação do fanatismo ferido; a Segunda, à compreensão da inteligência eclesiástica, alertada pela prudência de Erasmo, de que novos tempos haviam surgido e novas aspirações sacudiam vigorosamente os povos. A impetuosidade de Lutero produzira os resultados necessários. O fogo ateado pelo Cristo se reacendera nos corações, até então amortalhados pela rotina secular. Uma nova terra e um novo céu começavam a aparecer, segundo a previsão apocalíptica. E a partir do século dezoito, o clima estava preparado para o segundo grande passo do Cristianismo, que seria dado com a superação do literalismo; a libertação do espírito. Caberia a Kardec, a serviço do Consolador, libertar da letra que mata o espírito que vivifica.
RUPTURA DO ARCABOUÇO LITERAL
A posição do Espiritismo, em face dos textos sagrados do Cristianismo, parece ambígua. Ao mesmo tempo em que se apóia nos textos, a doutrina, a partir de Kardec, e por seus mais autorizados divulgadores, também os critica. Nada mais coerente com a natureza declaradamente racional do Espiritismo, com a sua orientação analítica, e portanto científica. A ambigüidade apontada pelos opositores não é mais do que o uso da liberdade de exame, sem o qual o Espiritismo teria de submeter-se ao dogmatismo literalista, incapaz de libertar, da prisão da letra, o espírito que vivifica. Admitir o absolutismo das Escrituras seria frustrar a evolução do Cristianismo, nos rumos da plena espiritualidade, que constitui ao mesmo tempo a sua essência e o seu destino, o seu objetivo.
O Cristianismo Primitivo aprendera a libertar das escrituras judaicas o seu conteúdo espiritual, como vemos nas epístolas apostólicas e nos próprios textos evangélicos. Estes textos, por sua vez, apresentam-se na forma livre de anotações, testemunhando a liberdade espiritual do ensino do Cristo, que não se prendia a nenhum esquema literal dotado de rigidez. Não obstante, o cristianismo medieval construiu um rígido arcabouço literal, no qual prendeu e abafou, sob os demais arcabouços da imensa construção da Igreja, a essência dos ensinos cristãos, o seu livre espírito. A Reforma, rompendo os arcabouços da superestrutura, não teve forças para romper o da infra-estrutura, por entender que neste se encontrava a base do Cristianismo. Romper o arcabouço literal seria como destruir os alicerces do edifício.
Era natural que assim acontecesse, pois os reformadores do Renascimento não poderiam ir até as últimas conseqüências. Primeiro, porque a sua ação estava naturalmente limitada pelas possibilidades da época; e depois, porque ela se destinava a preparar condições para o novo impulso a ser dado. Somente o reconhecimento das manifestações espíritas, o estudo desses fenômenos e a aceitação racional das comunicações esclarecedoras, dadas por via mediúnica, poderiam levar ao rompimento do arcabouço literal, última forma concreta em que o espírito cristão se refugiava. Podemos compreender o apego dos literalistas à "Palavra de Deus", quando nos lembramos dessa lei de inércia que nos amarra aos velhos hábitos. Melhor ainda o compreendemos, ao pensar na sensação de insegurança que devem ter sentido os reformistas, na proporção em que demoliam os arcabouços do velho e poderoso edifício, no qual por tantos séculos se abrigara a fé de seus antepassados e a deles mesmos.
O Cristo ensinara, com absoluta clareza, segundo as anotações evangélicas, que precisávamos perder a nossa vida, para encontrá-la. "Porque o que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á, mas o que a perder por amor de mim, esse a salvará" (Lucas, IX,24.) Ou ainda: "O que acha a sua vida, a perde; mas o que a perde por minha causa, esse a acha."(Mateus, X, 39.) A lição individual se aplica no plano coletivo. Os cristãos medievais se apegaram aquilo que consideravam como a sua própria vida: os hábitos religiosos antigos, os formalismos que pareciam dar-lhes segurança. Os cristãos reformistas se apegaram aos textos. Mas para encontrar a vida, era necessário ainda um último desapego, a libertação final, que devolveria ao Cristianismo a sua essência desfigurada pelas amoldagens humanas. O Cristianismo tinha também de ouvir a lição do Cristo: perder a sua vida formal e literal, para encontrá-la em espírito e verdade.
Coube ao Consolador, como o próprio Cristo anunciara, a tarefa de produzir esse rompimento final. "Em verdade vos digo - anunciou o Espírito da Verdade - que são chegados os tempos em que todas as coisas devem ser restabelecidas no seu exato sentido, para dissipar as trevas, confundir os orgulhosos e glorificar os justos". Em O livro dos Espíritos na resposta dada à pergunta 627, encontramos a mesma afirmação, com maiores esclarecimentos. Não só os textos sagrados do Cristianismo, mas todos os grandes textos sagrados e sistemas filosóficos, afirma o Espírito, "encerram os germens de grandes verdades", que podem ser libertados, "graças à chave que o Espiritismo fornece". Na introdução de O Evangelho Segundo o Espiritismo, logo nas primeiras linhas, Kardec oferece um exemplo da maneira pela qual o espiritismo "quebra a noz para tirar a amêndoa", segundo uma sua expressão. O respeito aos textos não se refere à forma, mas ao conteúdo. O Espiritismo respeita a essência, os ensinos contidos na letra, o espírito que nelas se incorpora, e não a própria letra.
Analisando os textos evangélicos, Kardec afirma: "a matéria contida nos Evangelhos pode ser dividida em cinco partes: os atos ordinários da vida do Cristo; os milagres; as profecias; as palavras que serviram para o estabelecimento dos dogmas da Igreja; e o ensino moral. As quatro primeiras serviram para controvérsias, mas a última subsiste inatacável". Logo mais, esclarece: "Essa parte constitui o objeto exclusivo da presente obra". A noz foi quebrada e a amêndoa retirada. O arcabouço literal foi rompido, para que o espirito se libertasse da letra.
Os próprios adeptos do Espiritismo, em geral, não percebem a grandeza dessa atitude e lamentam que Kardec não fizesse um estudo minucioso dos textos, analisando vírgula por vírgula. Outros, achando que Kardec fez pouco, preferem embrenhar-se no cipoal de Os Quatro Evangelhos, de Roustaing, aceitando as mais esdrúxulas interpretações de passagens evangélicas. Tudo por quê? Simplesmente porque continuam "apegados a sua vida", subjugados pela fascinação da letra, em vez de se entregarem ao espírito dos ensinos, que Kardec libertou, num trabalho inspirado e orientado pelas mais elevadas forças espirituais que o nosso mundo já teve a oportunidade de conhecer.
As escrituras são encaradas pelo Espiritismo como elaborações proféticas, ou seja, como produtos mediúnicos das chamadas épocas de revelação. Nessas épocas, que assinalaram os momentos decisivos, ou pelo menos importantes, da evolução humana, as figuras proféticas de Hermes, de Moisés, de Buda, de Maomé, revelaram aos homens alguns aspectos ocultos do processo da vida, ensinando-lhes princípios de orientação espiritual. Todas as escrituras sagradas, por isso mesmo, "encerram os germens de grandes verdades". Nos livros do Cristianismo, que incluem os livros fundamentais do Judaísmo, esses germens aparecem de maneira mais acessível a nós, por se dirigirem especialmente ao nosso tempo, através do processo histórico da evolução cristã.
É nesse sentido que o Espiritismo respeita as escrituras, e nelas se apóia, para confirmar a sua própria legitimidade, mas a elas não se escraviza. Pelo contrário, o Espiritismo recebe as escrituras como um acervo cultural, do qual retira as energias criadoras, as forças vitais condensadas em suas formas, para reelaborá-las em novas expressões de espiritualidade. É assim que o Cristianismo se liberta e se renova, na expansão de suas mais profundas e poderosas energias, para libertar e renovar o mundo.

J. Herculano Pires

05 novembro 2009

A FALANGE DO CONSOLADOR

Desde a promessa de Jesus, no Evangelho de João, até a vinda do Consolador, podemos ver, através da História, o trabalho bimilenar de preparação que se realizou, para o seu cumprimento. Bastaria isso para nos mostrar a importância daquele momento em que o Espírito da Verdade se identificou para o Prof. Rivail. Após dois mil anos de fermentação histórica, de doloroso amadurecimento do homem, de criminosas deformações da mensagem cristã, afinal se tornava possível o restabelecimento dos ensinos fundamentais em sua pureza primitiva. De um lado, o Espírito da Verdade se apresentava aos homens, à frente de elevadas entidades espirituais, que voltavam à Terra para completar a obra do Cristo; de outro lado, Allan Kardec se colocava a postos, à frente de criaturas espiritualizadas, dispostas a colaborarem na imensa tarefa. O Céu e a Terra se encontravam e se davam as mãos. A Falange do Consolador não era apenas uma graça que descia do alto, mas também uma equipe de trabalhadores humanos, que se elevava para recebê-la.
A própria intimidade, logo estabelecida entre o Espírito da Verdade e Allan Kardec, as relações afetivas que se desenvolveram entre ambos, prolongando-se na consolidação de uma profunda confiança espiritual, através de quinze anos de intensa atividade, é suficiente para mostrar-nos quanto se acham integrados no mesmo esforço, para a consecução do mesmo objetivo. Se o Espírito da Verdade comandava, por assim dizer, as atividades no plano espiritual, Allan Kardec fazia o mesmo no plano material. A falange do consolador se apresentava, portanto, como aquele grande exército espiritual, de que nos fala Conan Doyle, que tinha à frente uma turma de batedores. Desta vez, porém, os batedores estavam encarnados, constituíam a ponta-de-lança, a vanguarda terrena. E seu chefe, seu comandante seu orientador, era o Prof. Rivail, um homem de cinqüenta anos de idade, largamente experimentado, duramente provado, intensamente preparado para a grande missão. Somente ele, com o discernimento, a serenidade, a acuidade espiritual, o desprendimento, a isenção de ânimo, a coragem e a profunda cultura que o caracterizavam, podia colocar-se à frente da equipe que enfrentaria o "velho mundo", eriçado de preconceito e ambições, para fazer nascer entre os homens a alvorada de um "mundo novo", irradiante de compreensão e de amor.
As pessoas, que dotadas de um certa cultura, entusiasmam-se hoje com a possibilidade da época, e pretendem reformar a obra de Kardec, refundi-la, ou mesmo substituí-la por suas elucubrações pessoais ou por instruções particulares que recebem de espíritos pseudo-sábios, deviam meditar um pouco sobre a grandeza daquele momento em que o Espírito da Verdade se revelou ao Prof. Rivail. O que então se cumpria era uma promessa de Cristo, através de todo um imenso processo de amadurecimento espiritual do homem terreno, Kardec era apenas o instrumento necessário à elaboração do Terceiro Testamento, da codificação da Terceira Revelação, e nunca, jamais, como ele mesmo acentuou, um Revelador, um Profeta, um Messias, ou ainda um Filósofo, que por si mesmo elaborasse um novo sistema de pensamento. De outro lado, o Espírito da Verdade não se dizia o detentor exclusivo da Verdade, nem o Revelador Espiritual, mas o orientador dos trabalhos de toda a Falange do Consolador.
Ao lado do Espírito da Verdade encontramos toda a pléiade de entidades espirituais que subscrevem a mensagem publicada nos "Prolegâmenos" de O Livro dos Espíritos, e as demais que aparecem como autoras das numerosas mensagens transcritas nesse livro bem como no Evangelho Segundo o Espiritismo e nas outras obras da codificação. Além dessas entidades, as que não transmitiram mensagens diretas, mas auxiliaram o advento do Espiritismo, em todo o mundo, através de operações invisíveis, mas tão importantes, ou mais ainda do que as visíveis e ostensivas. Ao lado de Allan Kardec, encontramos os seus colaboradores, desde os que foram incumbidos de desperta-lhe a atenção para os fenômenos, e a que já aludimos várias vezes, até os médiuns que mais diretamente o serviram, com as meninas Baudin, a Srta. Japhet, a Srta. Ermance Dufaux, Camile Flamarion, Victorien Sardou, Tiedeman-Manthese, Bemi Sausse, o editor Didier, Gabriel Delanne, os companheiros da Sociedade Espírita de Paris, aquela que foi sua companheira de vida e de lutas, Amélie Boudet, e tantos outros, inclusive os que, fora da França, em todas as partes do mundo, se dispuseram a auxiliá-lo na grande batalha.
Nem todos os componentes da Falange do Consolador, na sua vanguarda encarnada, exerceram funções de destaque. Entretanto, quantos trabalhadores humildes, que passaram despercebidos aos olhos humanos, brilham felizes nas constelações espirituais. À maneira do que se deu com a divulgação do Cristianismo, conhecemos um grupo de espíritos que desempenharam atividades evidentes e ocuparam posições de grande responsabilidade no trabalho missionário, mas desconhecemos milhares de criaturas que, por toda parte, executaram tarefas de importância fundamental, na obscuridade e na humildade. Da mesma maneira, não conhecemos a extensão dos trabalhos espirituais, desenvolvidos no espaço, e ignoramos os nomes, até mesmo, dos principais Espíritos a serviço da causa. Mas que importam os nomes, se cada qual, no espaço e na Terra, teve a sua recompensa na própria oportunidade de trabalho?
O importante é procurarmos compreender o que foi esse momento histórico e espiritual do advento do Consolador. A publicação de O Livro dos Espíritos, em primeira edição, a 18 de abril de 1857, em Paris, marca o primeiro impacto da Doutrina Espírita no século. Não é ainda o livro definitivo, em sua forma acabada, que só virá a tomar com a Segunda edição. Mas é o primeiro clarão da grande alvorada. Depois, virão O Livro dos Médiuns, em 1861, desenvolvendo e completando o livrinho Instruções Práticas; O Evangelho Segundo o Espiritismo, em 1864, tendo nessa primeira edição o título de "Imitação do Evangelho Segundo o Espiritismo", O Céu e o Inferno, em 1865; A Gênese, os Milagres e as Predições, Segundo O Espiritismo em 1868. Com esse livro, concluía a Codificação. No ano seguintes, a 31 de março, Allan Kardec deixaria o mundo, encerrando sua missão. Mas encerrando-a apenas no tocante aquela existência, pois o seu trabalho se prolongaria pelos séculos, e os próprios Espíritos o advertiram da necessidade de uma nova encarnação, para prosseguimento da obra iniciada.

J. Herculano Pires

03 novembro 2009

MUNDO DE REGENERAÇÃO

1. HUMANIDADE CÓSMICA - Aquilo que há cem anos parecia uma simples utopia, ou alucinação de um visionário, hoje já se tornou admitido até mesmo pelos mais fortes redutos da tradição terrena. A evolução acelerou-se de tal forma, no transcorrer deste século, a partir da publicação de O Livro dos Espíritos, que o sonho de uma humanidade cósmica parece preste a mostrar-nos a sua face real, através das conquistas da ciência. Nossos primeiros vôos nas vastidões espaciais alargaram as perspectivas da vida humana, ao mesmo tempo que as investigações do cosmo modificaram a posição dos cientistas e dos próprios setores religiosos mais tradicionais. Admite-se a existência de mundos habitados, em nosso sistema e fora dele, e a possibilidade do estabelecimento de um próximo intercâmbio entre as esferas celestes.
O Livro dos Espíritos já afirmava, desde meados do século dezenove, que o cosmos está povoado de humanidades. E Kardec inaugurou as relações interplanetárias conscientes, através das comunicações mediúnicas, obtendo informações da vida em outros globos do nosso próprio sistema solar. Na secção "Palestras Familiares de Além-Túmulo", da "Reveu Spirite", Kardec publicou numerosas conversações com habitantes de outros planetas, alguns deles, como Mozart e Pallissy, emigrados da Terra para mundos melhores. Todo o capítulo terceiro da primeira parte de O Livro dos Espíritos refere-se ao problema da criação e da formação dos mundos, contendo, do item 55 ao 58, os períodos anunciadores da "Pluralidade dos Mundos".
Os Espíritos afirmaram a Kardec que todos os mundos são habitados. A audácia da tese parece temerária, e está ainda muito longe de ser admitida. Mas é evidente que em parte já está sendo aceita por todo o mundo civilizado. Por outro lado, a condição fundamental para a sua aceitação já foi também admitida: a de que as formas de vida variam ao infinito, de mundo para mundo, uma vez que a constituição dos próprios globos é também a mais variada possível. Hoje, nos países cientificamente mais adiantados, como os Estados Unidos e a Rússia, fazem-se experiências de laboratório para o estudo da astrobiologia. As sondas espaciais, por sua vez, demonstraram a existência de vida microscópica nas mais distantes regiões do espaço, e o exame de aerólitos vem demonstrando que as pedras estelares trazem para a terra restos de fósseis desconhecidos.
Concomitantemente com esses progressos, na própria Terra as investigações científicas se ampliaram, revelando através da Física, da Biologia e da Psicologia, novas dimensões da vida. A Física Nuclear, a Biônica, a Cibernética e a Parapsicologia modificam a nossa posição diante dos problemas do mundo e da vida. Os parapsicólogos demostram a existência de um substrato extrafísico na mente humana, e portanto na constituição do homem, ao mesmo tempo que os físicos nucleares revelam a natureza energética da matéria. Nossas concepções vão sendo impulsionadas irresistivelmente além do domínio físico, em todos os sentidos. A humanidade múltipla, de natureza cósmica, habitando dimensões desconhecidas, já não parece mais uma utopia ou uma simples alucinação.
No item 55 de O Livro dos Espíritos encontramos esta afirmação, em resposta à pergunta de Kardec sobre a habitabilidade de todos os mundos; "Sim, e o homem terreno está bem longe de ser, como acredita, o primeiro em inteligência, bondade e perfeição. Há, entretanto, homens que se julgam espíritos fortes e imaginam que este pequeno globo tem o privilégio de ser habitado por seres racionais. Orgulho e vaidade! Crêem que Deus criou o Universo somente para eles". No item 56 vemos esta antecipação: "a constituição dos diferentes mundos não se assemelha." E no item 57, a explicação de que os mundos mais distantes do sol tem outras fontes de luz e calor, que ainda não conhecemos.
A tese da pluralidade dos mundos habitados leva-nos imediatamente ao conceito de solidariedade cósmica. No item 176 encontramos a afirmação de que: "todos os mundos são solidários". Esta solidariedade se traduz pelo intercâmbio reencarnatório. Os espíritos mudam de globos, de acordo com as necessidade ou conveniência de seu processo evolutivo. Essas migrações, entretanto, não são feitas ao acaso, mas segundo as leis universais da evolução. Cada mundo se encontra num determinado grau de aperfeiçoamento. Suas portas serão franqueadas aos espíritos, na proporção em que estes vão, por sua vez, atingindo graus superiores em sua evolução pessoal. Como os homens nas relações internacionais, espíritos superiores podem reencarnar-se em mundos inferiores, cumprindo missões civilizadoras. Da mesma maneira, espíritos, de mundos inferiores podem estagiar em mundos superiores se estiverem em condições para isso, e voltar aos seus globos, para ajudá-los a melhorar.
A humanidade cósmica é solidária, e a civilização cósmica é infinitamente superior ao nosso pobre estágio terreno, de que tanto nos vangloriamos. Há mundos de densidade física fora do alcance dos nossos sentidos, habitados por humanidades que nos pareceriam fluídicas, e que não obstante são, no plano em que se encontram, concretas e definidas. Humanidades felizes, que se utilizam de corpos leves e habitam regiões paradisíacas, numa estrutura social em que prevalecem o bem, o amor, a paz, o perfeito entendimento entre as criaturas. Humanidades livres da escravidão dos instintos animais e dos corrosivos morais do egoísmo e do orgulho, que infelicitam os mundos inferiores.
"A vida dos Espíritos, no seu conjunto, segue as mesmas fases da vida corpórea", ensina Kardec, no comentário que faz no item 191 de O Livro dos Espíritos. Os espíritos passam gradativamente "do estado de embrião ao de infância, para chegarem, por uma sucessão de períodos, ao estado de adulto, que é o da perfeição, com a diferença de que nesta não existe o declínio nem a decrepitude da vida corpórea". Assim, as concepções geocênctricas de céu e inferno, como prêmio ou castigo eternos de uma curta existência num pequeno mundo inferior, são substituídas pela compreensão copérnica da vida universal e do progresso infinito para todas as criaturas. Bastaria esta rápida visão da humanidade cósmica para nos mostrar como ainda estamos, infelizmente, distantes de uma assimilação perfeita da Doutrina Espírita. Quando conseguirmos compreender integralmente esta cosmo-sociologia e suas imensas conseqüências, estaremos à altura do Espiritismo.
J.Herculano Pires