Allan Kardec ainda escrevia os principais tomos de sua obra, quando o Espiritismo aportou ao Brasil, sendo, portanto, divulgado quase simultaneamenteà sua difusão na Europa10. Os estudos sociológicos aqui realizados sobre o tema, no entanto, são relativamente recentes. Dois autores, Cândido Procópio Camargo11 e Roger Bastide12, assinam os primeiros trabalhos, introduzindo a questão que nortearia boa parte da discussão dos estudos de religião nos anos 60 e 70: como explicar a difusão de religiões populares, especialmente o Pentecostalismo, o Espiritismo e as religiões afro-brasileiras, num contexto de aceleração do processo de urbanização? Ou em outros termos: como explicar a proliferação da religiosidade popular, tida como símbolo de "atraso", justamente no pólo do desenvolvimento urbano e econômico do país, ou seja, no espaço social e simbólico tido como emblemático da "modernidade"?
Inaugurando a discussão desse tema, esses autores se tornaram referência de toda a produção subseqüente13. Dentre as idéias que postulam, tornaram corrente a assertiva de que o Espiritismo sofreu uma significativa mudança no processo de sua transplantação para o Brasil, considerando-se que na França, onde teve origem, prevalecia a ênfase na dimensão experimental e científica da doutrina, enquanto no Brasil tornou-se dominante a feição mística, religiosa.
Cândido Procópio Camargo sustenta essa idéia já às primeiras páginas do seu livro Kardecismo e Umbanda. Neste afirma: "A ênfase no aspecto religioso da obra de Kardec constitui [...] o traço distintivo do Espiritismo brasileiro e, talvez, seja a causa de seu sucesso entre nós" (1961: 4). Afirmação que reitera adiante, quando declara:
Tanto a doutrina, como especialmente a prática espírita, ganharam no Brasil novo alento, desenvolvendo conotações e ênfases especiais que as adaptaram à realidade brasileira. A história dessa adaptação é um aspecto [...] da constituição de uma religião original entre nós. (: 8; destaques meus)
Alguns anos mais tarde Procópio Camargo reapresenta essa idéia em seu novo livro, Católicos, espíritas e protestantes (1963). Nesta obra o autor sugere que a doutrina kardecista "não sofreu modificações essenciais quando transplantada para a sociedade brasileira, embora a adaptação a uma situação social nova tenha gerado algumas características especiais" (: 162; destaques meus). Dentre estas últimas destaca o fato de que "no Brasil o aspecto religioso torna-se preponderante, em contraposição ao filosófico e científico" (idem; destaques meus). O autor atribui essa mudança de ênfase doutrinária à "tradição cultural brasileira", caracterizada como "impregnada de um estilo sacral de compreender a realidade" (1961: 112). Donde conclui que esta é uma sociedade "moderna", porém, contraditória: "embora a cultura brasileira seja naturalmente complexa" e, portanto, oriente-se "também por valores estritamente racionais e profanos, cremos não ser exagerado afirmar que a solução sacral para a vida assume, entre nós, importância considerável" (idem; destaque meu).
Roger Bastide partilha dessa idéia, mas envereda a análise noutra direção. Ele sugere que o Espiritismo sofreu interpretações diversas na sociedade brasileira, segundo a classe social. Segundo ele, os segmentos de classe alta, "intelectualizados", tendem a enfatizar as experiências de tipo científico. Já o Espiritismo praticado nos centros, que concentra os segmentos de classe média, caracteriza-se por um cunho acentuadamente religioso. Mas a ênfase de suas práticas é terapêutica, tal como se observa entre os segmentos populares. Com relação a estes últimos, porém, ressalva: "Aqui [...] o caráter médico do espiritismo continua, tanto mais que a tradição do curador, da magia curativa, de definição da doença pela ação mística de feiticeiros ou da vingança dos mortos, permanece a base da mentalidade primitiva" (1985[1960]: 433).
A ênfase no aspecto terapêutico, associado a noções mágicas, constitui, portanto, o diferencial do Espiritismo brasileiro. Mas embora Bastide sinalize cortes raciais e/ou de classe na interpretação da doutrina espírita, conclui generalizando: "Em suma, o espiritismo foi transformado pelo meio brasileiro, meio [este] mais confiante no 'curandeiro' que no médico e que não separa o sobrenatural da natureza" (idem).
Divergentes, as duas linhas de interpretação angariaram inúmeros seguidores. Não cabe aqui, porém, reconstruir genealogias. Importa sinalizar que a perspectiva comparativa, relacional, que inaugura a análise do fenômeno, tornou-se o modo corrente pelo qual passou a se pensar a história do Espiritismo no Brasil.
Dentre as imagens resultantes interessa-me retomar uma que se tornou corrente, dentro e fora dos meios acadêmicos. Refiro-me ao suposto, com base nas análises acima, de que no Brasil a doutrina kardecista sofreu uma distorção. Autores nacionais bem como estrangeiros partilham dessa posição. Revisões recentes de processos de confronto cultural permitem, no entanto, recolocar a questão em outros termos. Ou seja, considerar deslocamentos de ênfases doutrinárias como distorção ou adulteração de um modelo original obscurece o fato de que toda versão, toda reinterpretação é sempre um ato criativo. Sahlins, em seu livro Ilhas de história, chama atenção para essa questão ao afirmar que a ordem cultural não é estática, mas alterada na ação, isto é, sujeita a riscos empíricos. Isso porque agindo a partir de perspectivas diferentes e com poderes sociais diversos para a objetivação de suas interpretações, as pessoas chegam a diferentes conclusões e as sociedades elaboram os consensos, cada qual à sua maneira. A comunicação social é [portanto] um risco [...]. E os efeitos desses riscos podem ser inovações radicais. (1990: 10; destaque meu)
Tratar a experiência do confronto cultural, mais especificamente a diversidade de respostas locais ao sistema mundial dessa perspectiva, fornece uma pista para se pensar as especificidades assumidas pelo Espiritismo no Brasil a partir de um novo enfoque. Ou seja, argumentando com Sahlins, é possível afirmar que privilegiar determinadas práticas assim como deslocar a ênfase de certos preceitos doutrinários envolvem um ato criativo. Trata-se de reinterpretação, isto é, de uma particularização cultural e histórica de idéias e práticas concebidas com pretensão de universalidade. Nesse sentido, o Espiritismo à brasileira seria uma versão original e não um produto menor, adulterado ou desviante.
Resta saber como se construiu essa originalidade.
Construindo laços, definindo fronteiras: Espiritismo, Catolicismo e as religiões afro
A literatura mencionada tende a situar o Espiritismo no campo religioso brasileiro a partir da interlocução por este estabelecida com as religiões de tradição afro. Essa perspectiva de análise engendrou duas posturas distintas: 1) de um lado, há autores que pensam as relações entre o Espiritismo e as religiões de tradição afro em termos de um continuum – isto é, como variação empírica de um mesmo princípio de estruturação cosmológica e de produção da experiência religiosa (Camargo,1963 e 1973; Birman, 1995); 2) outros concebem o Espiritismo por oposição às religiões afro-brasileiras, uma espécie de espelho invertido, seja quanto às suas características sociais e étnicas, seja quanto à estrutura ritual e doutrinária (Maggie, 1992; Ortiz, 1991 [1978]; dentre outros).
Esses enfoques que fazem dos cultos de possessão uma unidade, pelo princípio da afinidade ou pelo princípio da oposição são, sem dúvida, pertinentes. No entanto, tal recorte tende a omitir ou, pelo menos, a relegar a um segundo plano as relações estabelecidas entre o Espiritismo e o Catolicismo, religião ainda hegemônica no país. É o que se verifica, por exemplo, no estudo de Maria Laura Cavalcanti (1983), para quem a questão sequer se coloca. Outros autores se referem ao tema sem problematizá-lo, como Renato Ortiz, para quem as relações entre Espiritismo e Catolicismo são tidas como dadas: "Consideramos a influência do catolicismo como sendo implícita", diz ele (1991 [1978] : 34). Cândido Procópio Camargo também partilha dessa posição: "[...] no kardecismo predomina a formulação ética de inspiração cristã" (1963), diz ele, sem se preocupar em qualificar o modo como esta foi apropriada e/ou reinterpretada pelo Espiritismo.
Uma das lacunas da produção sobre o tema consiste justamente no fato de não se questionar como o imaginário e as práticas católicas impactaram o Espiritismo, influenciando de forma significativa o modo de sua expressão no Brasil. Aubrée e Laplantine (1990) fazem menção a essa questão ao sugerirem que o modo como os brasileiros se relacionam com os espíritos não faz mais que "prolongar, ampliar e sistematizar o que se poderia chamar de cultura brasileira dos espíritos" (: 85), cujo principal traço seria a "intimidade com os santos, eguns e orixás" (idem). Mas também esses autores não avançam a discussão e acabam realçando, como os demais, as relações entre o Espiritismo e as religiões de tradição afro.
O que se perde de vista nessas análises é a complexidade das relações estabelecidas pelo Espiritismo no campo religioso brasileiro, em particular aquelas que dizem respeito às disputas e negociações realizadas com a religião dominante, hegemônica no país14. Privilegio essa relação uma vez que considero, em oposição à tradição consolidada na literatura, que o Espiritismo definiu sua identidade elegendo como sinais diacríticos elementos do universo católico. Isso significa afirmar que sua relação com a religião dominante no país não se resumiu simplesmente ao endosso de certas idéias ou práticas rituais, como sugerem autores acima mencionados. O "matiz perceptivelmente católico" do Espiritismo brasileiro decorre, conforme pretendo demonstrar, da incorporação de um dos substratos fundamentais da cultura religiosa ocidental: a noção cristã de santidade.
Chico Xavier configura nesse contexto, como pretendemos demonstrar adiante, um paradigma dessa construção. No cenário contemporâneo, porém, é possível, vislumbrar novas tendências. Mas estas reforçam o argumento acima, uma vez que é em larga medida contra esse "viés católico" de que se revestiu o Espiritismo brasileiro que começaram a emergir, a partir dos anos 80, novas tendências de filiação nesse campo.
O presente artigo ilustra essas diferentes versões que hoje convivem no campo espírita a partir da análise da trajetória de três personagens: 1) Chico Xavier, o primeiro deles, ilustra a construção da "tradição" espírita brasileira, cuja marca consiste na síntese com o Catolicismo; 2) Luiz Antonio Gasparetto e 3) Waldo Vieira sintetizam, cada um à sua maneira, tendências da crítica contemporânea a esse modelo que se tornou hegemônico, o primeiro realizando-a por meio da busca de diálogo com temas e práticas do chamado neo-esoterismo15 e do universo da auto-ajuda, enquanto o segundo enveredou em busca de uma nova síntese com a ciência.
Apresento-os aqui em contraponto, a partir da construção narrativa de suas biografias, sem ter a intenção de contextualizar historicamente suas trajetórias pessoais. Clifford Geertz já advertia, em Observando el Islam, que "observar a história a partir de personalidades, especialmente personalidades dramáticas, é sempre perigoso"(1994 [1968]: 97). O risco do empreendimento, porém, justifica-se, diz ele, quando se trata de personagens cujas carreiras sintetizam um determinado período da história de seus países. Entendendo ser este o caso, decidi assumir o risco.
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