07 novembro 2009

RUPTURA DOS ARCABOUÇOS RELIGIOSOS

FRAGMENTAÇÃO DA IGREJA

A partir da rebelião luterana, os arcabouços religiosos medievais cederam ao impacto do espírito renovador. A Igreja fragmentou-se. Rompidos os arcabouços, o edifício gigantesco ameaçou ruir. Aquilo que Erasmo temia, verificou-se de maneira inapelável. Durante séculos, o mundo não gozaria mais da unidade religiosa, e consequentemente, da "pax romana" da Idade Média. A timidez de Erasmo, os seus excessos de prudência, não lhe haviam deixado perceber o sentido profundo das próprias palavras evangélicas, atribuídas ao Cristo: "Não julgueis que vim trazer paz à terra; não vim trazer-lhe a paz, mas a espada". (Mateus, X: 34.) Ou ainda: "Eu vim trazer fogo à Terra, e que mais quero, senão que ele se acenda?"( Lucas, XII: 49).
A mesma espada que dividiu os judeus na era apostólica, a partir da pregação do Cristo, o mesmo fogo que lavrou no seio do Judaísmo, devastando a sua unidade apática, haviam também de dividir os cristãos e calcinar o dogmatismo fideísta da nova estagnação religiosa. A "religião estática" cederia lugar aos impulsos revitalizadores da "religião dinâmica", desse "élan vital" que teria de romper as estruturas materiais, para que a "religião em espírito e verdade" pudesse triunfar dos formalismos dominantes. Lutero sentia profundamente essa verdade, embora ainda não pudesse compreendê-la em plenitude. Erasmo a compreendeu, mas não a sentiu com a intensidade suficiente para impulsioná-lo à ação. Esse desajuste, entretanto, era necessário ao desenvolvimento do processo histórico, que não poderia prescindir das fases que caracterizam o desenrolar da história.
A revolução luterana consolidou-se com o código de vinte e oito artigos da Confissão de Augsburg, elaborado por Melanchton, e expandiu-se rapidamente pela Alemanha e os países nórdicos, tornando-se religião estatal. Lutero pretendia substituir os símbolos medievais pela verdade evangélica, substituir o aparelhamento do culto pela presença do Cristo. Era um impulso decisivo de volta às origens cristãs. Mas as próprias circunstâncias apresentavam obstáculos diversos a esse retorno ideal. O luteranismo não conseguiu abolir completamente a simbólica religiosa do catolicismo-romano e terminou adaptando uma parte da mesma. Conservou os três sacramentos que considerava fundamentais: o batismo, a comunhão e a penitência, e manteve a organização sacerdotal. Mas o mais curioso da Reforma foi à substituição de uma idolatria por outra. Em lugar dos ídolos, das relíquias, do instrumental variado do culto, do dogmatismo dos concílios e da autoridade papal, o luteranismo consagrou a idolatria da letra, a infalibilidade dos textos sagrados.
Paulo, o apóstolo, já havia ensinado que a letra mata e somente o espírito vivifica. Mas também a liberdade subitamente conquistada pode matar. Livrando-se do peso morto dos ídolos materiais que atravancam a religião medieval, os reformadores da Renascença deviam apegar-se forçosamente a alguma coisa. Essa nova base, sobre a qual deviam firmar-se para prosseguir na luta, foi a "Palavra de Deus", consubstanciada nos textos da Escritura. A Reforma estabeleceu o império do literalismo, o domínio da letra. Jamais o Cristianismo europeu fizera tanto jus à denominação da "religião do livro", que os maometanos lhe haviam dado. Nos templos reformados, a Bíblia substituiu a imagem. É fácil compreendermos que um grande passo estava dado, pois libertar a letra era a medida indispensável para conseguir-se a libertação do espírito, nela encerrado.
O "verdadeiro evangelho", de que Erasmo falara a Frederico da Saxônia, surgiu sobre a Europa nas múltiplas traduções para as línguas nacionais, a partir da germânica. Os textos ocultos, até então privilégio dos clérigos eram retirados das criptas e oferecidos ao povo, que os recebia com sofreguidão. A possibilidade de contato direto com a Escritura, o direito de sentir o seu poder inspirador nos próprios textos, sem as interpretações clericais, eis a novidade que abalava o Cristianismo e abria perspectivas imprevisíveis para o seu desenvolvimento. Foi essa a missão espiritual da Reforma. Sem o florescimento da seara cristã, sem essa floração magnífica do Evangelho, por toda parte, não poderiam chegar ao tempo dos frutos e da colheita, que viria mais tarde, quando se cumprisse a Promessa do Consolador.
Na França e na Suíça, Zwinglio e Calvino se incumbiram de dar prosseguimento à Reforma, que se estendeu rapidamente aos Países Baixos e à Escócia. Calvino parece ter sentido ainda, mais fundamento que Lutero, a necessidade de libertar o Cristianismo da asfixia dos símbolos. Apegou-se, entretanto, ao dogma da predestinação, e seu fanatismo atingiu às raias da brutalidade, com terríveis episódios de violência. Não obstante, sua contribuição resultou no vigoroso surto do liberalismo protestante, iluminado pela influência do criticismo kantiano. Na Inglaterra, a libertação do domínio papal, efetuada por Henrique VIII e consolidada pela rainha Elisabete, não chegou a atingir a profundidade das reformas de Lutero e Calvino. A igreja Anglicana, dominada pelo soberano nacional, conservou enorme acervo da herança medieval.
De qualquer maneira, a reforma estendeu-se por toda parte, deitou raízes na América, e obrigou a Igreja a também se reformar, através do Concílio de Trento, em suas três sessões sucessivas. O movimento da Contra-Reforma apresentou duas faces contraditórias: uma negativa, com a instituição do Santo Ofício, o estabelecimento da Inquisição; outra positiva, com o trabalho educacional da Companhia de Jesus. A primeira face correspondia à indignação do fanatismo ferido; a Segunda, à compreensão da inteligência eclesiástica, alertada pela prudência de Erasmo, de que novos tempos haviam surgido e novas aspirações sacudiam vigorosamente os povos. A impetuosidade de Lutero produzira os resultados necessários. O fogo ateado pelo Cristo se reacendera nos corações, até então amortalhados pela rotina secular. Uma nova terra e um novo céu começavam a aparecer, segundo a previsão apocalíptica. E a partir do século dezoito, o clima estava preparado para o segundo grande passo do Cristianismo, que seria dado com a superação do literalismo; a libertação do espírito. Caberia a Kardec, a serviço do Consolador, libertar da letra que mata o espírito que vivifica.
RUPTURA DO ARCABOUÇO LITERAL
A posição do Espiritismo, em face dos textos sagrados do Cristianismo, parece ambígua. Ao mesmo tempo em que se apóia nos textos, a doutrina, a partir de Kardec, e por seus mais autorizados divulgadores, também os critica. Nada mais coerente com a natureza declaradamente racional do Espiritismo, com a sua orientação analítica, e portanto científica. A ambigüidade apontada pelos opositores não é mais do que o uso da liberdade de exame, sem o qual o Espiritismo teria de submeter-se ao dogmatismo literalista, incapaz de libertar, da prisão da letra, o espírito que vivifica. Admitir o absolutismo das Escrituras seria frustrar a evolução do Cristianismo, nos rumos da plena espiritualidade, que constitui ao mesmo tempo a sua essência e o seu destino, o seu objetivo.
O Cristianismo Primitivo aprendera a libertar das escrituras judaicas o seu conteúdo espiritual, como vemos nas epístolas apostólicas e nos próprios textos evangélicos. Estes textos, por sua vez, apresentam-se na forma livre de anotações, testemunhando a liberdade espiritual do ensino do Cristo, que não se prendia a nenhum esquema literal dotado de rigidez. Não obstante, o cristianismo medieval construiu um rígido arcabouço literal, no qual prendeu e abafou, sob os demais arcabouços da imensa construção da Igreja, a essência dos ensinos cristãos, o seu livre espírito. A Reforma, rompendo os arcabouços da superestrutura, não teve forças para romper o da infra-estrutura, por entender que neste se encontrava a base do Cristianismo. Romper o arcabouço literal seria como destruir os alicerces do edifício.
Era natural que assim acontecesse, pois os reformadores do Renascimento não poderiam ir até as últimas conseqüências. Primeiro, porque a sua ação estava naturalmente limitada pelas possibilidades da época; e depois, porque ela se destinava a preparar condições para o novo impulso a ser dado. Somente o reconhecimento das manifestações espíritas, o estudo desses fenômenos e a aceitação racional das comunicações esclarecedoras, dadas por via mediúnica, poderiam levar ao rompimento do arcabouço literal, última forma concreta em que o espírito cristão se refugiava. Podemos compreender o apego dos literalistas à "Palavra de Deus", quando nos lembramos dessa lei de inércia que nos amarra aos velhos hábitos. Melhor ainda o compreendemos, ao pensar na sensação de insegurança que devem ter sentido os reformistas, na proporção em que demoliam os arcabouços do velho e poderoso edifício, no qual por tantos séculos se abrigara a fé de seus antepassados e a deles mesmos.
O Cristo ensinara, com absoluta clareza, segundo as anotações evangélicas, que precisávamos perder a nossa vida, para encontrá-la. "Porque o que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á, mas o que a perder por amor de mim, esse a salvará" (Lucas, IX,24.) Ou ainda: "O que acha a sua vida, a perde; mas o que a perde por minha causa, esse a acha."(Mateus, X, 39.) A lição individual se aplica no plano coletivo. Os cristãos medievais se apegaram aquilo que consideravam como a sua própria vida: os hábitos religiosos antigos, os formalismos que pareciam dar-lhes segurança. Os cristãos reformistas se apegaram aos textos. Mas para encontrar a vida, era necessário ainda um último desapego, a libertação final, que devolveria ao Cristianismo a sua essência desfigurada pelas amoldagens humanas. O Cristianismo tinha também de ouvir a lição do Cristo: perder a sua vida formal e literal, para encontrá-la em espírito e verdade.
Coube ao Consolador, como o próprio Cristo anunciara, a tarefa de produzir esse rompimento final. "Em verdade vos digo - anunciou o Espírito da Verdade - que são chegados os tempos em que todas as coisas devem ser restabelecidas no seu exato sentido, para dissipar as trevas, confundir os orgulhosos e glorificar os justos". Em O livro dos Espíritos na resposta dada à pergunta 627, encontramos a mesma afirmação, com maiores esclarecimentos. Não só os textos sagrados do Cristianismo, mas todos os grandes textos sagrados e sistemas filosóficos, afirma o Espírito, "encerram os germens de grandes verdades", que podem ser libertados, "graças à chave que o Espiritismo fornece". Na introdução de O Evangelho Segundo o Espiritismo, logo nas primeiras linhas, Kardec oferece um exemplo da maneira pela qual o espiritismo "quebra a noz para tirar a amêndoa", segundo uma sua expressão. O respeito aos textos não se refere à forma, mas ao conteúdo. O Espiritismo respeita a essência, os ensinos contidos na letra, o espírito que nelas se incorpora, e não a própria letra.
Analisando os textos evangélicos, Kardec afirma: "a matéria contida nos Evangelhos pode ser dividida em cinco partes: os atos ordinários da vida do Cristo; os milagres; as profecias; as palavras que serviram para o estabelecimento dos dogmas da Igreja; e o ensino moral. As quatro primeiras serviram para controvérsias, mas a última subsiste inatacável". Logo mais, esclarece: "Essa parte constitui o objeto exclusivo da presente obra". A noz foi quebrada e a amêndoa retirada. O arcabouço literal foi rompido, para que o espirito se libertasse da letra.
Os próprios adeptos do Espiritismo, em geral, não percebem a grandeza dessa atitude e lamentam que Kardec não fizesse um estudo minucioso dos textos, analisando vírgula por vírgula. Outros, achando que Kardec fez pouco, preferem embrenhar-se no cipoal de Os Quatro Evangelhos, de Roustaing, aceitando as mais esdrúxulas interpretações de passagens evangélicas. Tudo por quê? Simplesmente porque continuam "apegados a sua vida", subjugados pela fascinação da letra, em vez de se entregarem ao espírito dos ensinos, que Kardec libertou, num trabalho inspirado e orientado pelas mais elevadas forças espirituais que o nosso mundo já teve a oportunidade de conhecer.
As escrituras são encaradas pelo Espiritismo como elaborações proféticas, ou seja, como produtos mediúnicos das chamadas épocas de revelação. Nessas épocas, que assinalaram os momentos decisivos, ou pelo menos importantes, da evolução humana, as figuras proféticas de Hermes, de Moisés, de Buda, de Maomé, revelaram aos homens alguns aspectos ocultos do processo da vida, ensinando-lhes princípios de orientação espiritual. Todas as escrituras sagradas, por isso mesmo, "encerram os germens de grandes verdades". Nos livros do Cristianismo, que incluem os livros fundamentais do Judaísmo, esses germens aparecem de maneira mais acessível a nós, por se dirigirem especialmente ao nosso tempo, através do processo histórico da evolução cristã.
É nesse sentido que o Espiritismo respeita as escrituras, e nelas se apóia, para confirmar a sua própria legitimidade, mas a elas não se escraviza. Pelo contrário, o Espiritismo recebe as escrituras como um acervo cultural, do qual retira as energias criadoras, as forças vitais condensadas em suas formas, para reelaborá-las em novas expressões de espiritualidade. É assim que o Cristianismo se liberta e se renova, na expansão de suas mais profundas e poderosas energias, para libertar e renovar o mundo.

J. Herculano Pires

Um comentário:

Jorge disse...

Amigo Dalailam,

Outro ponto prá você. Que texto!!!
Percebe-se a tremenda luta pela emancipação do pensamento. Sem essa libertação, não há como evoluir o sentido religioso. É degrau por degrau e poucos de nós tem se apercebido disso.
Herculano nos esclarece, como sempre, para mantermos sempre o pensamento aberto sem fixação em algo estático.
A civilização precisa crescer, mas só acontecerá com o homem crescendo.

Parabéns!!!

Jorge