11 novembro 2009

A CABANA E O SALÃO


Revista Espírita, dezembro de 1862
Estudo de costumes espíritas.
Reencontramos, em nossa correspondência antiga, a carta seguinte, que vem a propósito depois do artigo precedente.

Paris, 29 de julho de 1860.
Senhor, tomo a liberdade de vos comunicar as reflexões que me sugeriram dois fatos observados por mim mesmo, e que poderiam' corretamente, penso, ser qualificados de estudos de costumes espíritas. Vereis por aí que os fenômenos morais não são sem valor para mim; depois que me entreguei ao estudo do Espiritismo, parece-me que vejo cem vezes mais coisas do que antes; tal fato ao qual não teria dado nenhuma atenção, leva-me hoje a refletir; eu estou, poderia dizer, diante de um espetáculo perpétuo, onde cada indivíduo tem o seu papel, e me oferece um enigma a decifrar; é verdadeiro dizer que os há tão fáceis quando se possui a admirável chave do Espiritismo, que não se tem grande mérito; mas não oferecem senão mais interesse, porque com o Espiritismo encontra-se como num país no qual se compreende a língua. Tornei-me meditativo e observador, porque tudo para mim agora tem a sua causa; os mil e um fatos que outrora me pareciam o produto do acaso e passavam por mim desapercebidos, hoje têm sua razão de ser e sua utilidade; um nada, na ordem moral, atrai minha atenção e me é uma lição. Mas esqueço que é a propósito de uma lição que quero conversar convosco. Sou professor de piano; há algum tempo, indo à casa de uma de minhas alunas que pertence a uma família da sociedade, entrei na portaria, não me lembrando mais por qual motivo. É uma senhora de mão fechada sobre o quadril, que não foi desqualificada nem no físico e nem no moral, ocupando um quarto de porteiro. Eu a vi repreender de importância sua filha, menina de uns quinze anos, cujas maneiras fazem um contraste evidente com a mãe. "Que fez, pois, a senhorita Justine, disse-lhe, para excitar a esse ponto vossa cólera? - Não me faleis disso, senhor, essa resmungona se achou de dar-se ares de duquesa! A senhorita não gosta de lavar a louça; ela acha que isso lhe estraga as mãos, que isso cheira mal, ela que foi educada com as vacas na casa de sua avó; teme de lhe sujar as unhas; e são necessárias essências em seu lenço! Dar-te-ei essências, eu!" Ali, uma vigorosa bofetada fá-la recuar quatro passos. "Ah! é que, vede, meu pequeno senhor, é preciso corrigir as crianças quando são jovens; jamais estraguei os meus, todos os meus rapazes são bons operários, será preciso que esta mulher afetada e ridícula perca seus ares de grande dama." Depois de ter dado alguns conselhos de doçura à mãe e de docilidade à filha, subi para minha aluna sem dar importância a essa cena de família. Lá, por uma singular coincidência, vi a contrapartida. A mãe, mulher da sociedade e de boas maneiras, ralhava também com sua filha, mas por um motivo todo oposto. "Mas, dominai-vos, pois, como é preciso, Sophie, dizia-lhe; tendes um verdadeiro jeito de cozinheira; isso não é de admirar, tendes uma predileção toda particular pela cozinha, onde parece terdes maior prazer do que no salão.
Eu vos asseguro que Justine, a filha do porteiro, vos faria vergonha; verdadeiramente, dirse-ia que vos transformastes em ama-de-leite."
Jamais dera atenção a essas particularidades; foi preciso aproximar as duas cenas para me fazer notá-las. A senhorita Sophie, minha aluna, é uma jovem de dezoito anos, bastante bonita, mas seus traços têm alguma coisa de vulgar; todas as suas maneiras são comuns e sem distinção; seu jeito, seus movimentos têm alguma coisa de pesado e de desajeitado; ignorava seus pendores para a cozinha. Pus-me então a compará-la à pequena Justine de instinto tão aristocráticos, e me perguntava se não estava ali um exemplo surpreendente
das tendências inatas, uma vez que, nessas duas jovens, a educação foi impotente para modificá-las. Por que uma, elevada ao seio da opulência e do bom tom, tem gostos e maneiras vulgares, ao passo que a outra que, desde sua infância, viveu no meio mais rústico, tem o sentimento da distinção e das coisas delicadas, apesar das correções de sua mãe para fazer-lhe perder o hábito? Ó filósofos! que quereis sondar as dobras do coração humano, explicai, pois, esses fenômenos sem as existências anteriores; para mim, é indubitável que essas duas jovens têm os instintos daquilo que foram. Que pensais disto,caro mestre?
Aceitai, D.......
Pensamos que a senhorita Justine, a porteira, podia bem ser uma variante do que disse Charles Fourier: 'Vêem-se todos os dias pessoas irem pedir a caridade à porta dos castelos dos quais foram as proprietárias em suas vidas precedentes." Quem sabe se a senhorita Justine não foi a senhora nessa mansão, e a senhorita Sophie, a grande senhora, sua porteira? Esta idéia é revoltante para certas pessoas que não podem se dar a pensar terem podido ser menos do que são hoje, ou de se tornarem criados de seus criados; por que então em que se tornam a raça de puro sangue, que se tomou tanto cuidado em não casar
em desigualdade? Consolai-vos; o sangue de vossos antepassados pode correr em vossas veias, porque o corpo procede do corpo. Quanto ao Espírito, é outra coisa; mas o que fazer se é assim? Não é porque um homem esteja contrariado com a chuva que isso impedirá de chover. É humilhante, sem dúvida, pensar que o senhor possa se tornar servidor, e o rico, mendigo; mas nada é mais fácil do que impedir que isso seja assim; não há senão que não ser vão e orgulhoso, e não se será rebaixado; de ser bom e generoso, e não se será reduzido a pedir o que se recusou aos outros. Ser punido por onde se pecou, não é a mais justa das justiças? Sim, de grande se pode tornar pequeno, mas quando se foi bom não
pode-se tornar mau; ora, não vale mais ser um honesto proletário do que um rico vicioso?

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