A ciência espírita não procede por exclusão, mas procura a síntese. As ciências positivas, até agora, procederam por exclusão. Não podendo admitir a existência do espírito, deixaram-no à margem das suas cogitações, e acabaram por tentar excluí-lo definitivamente da realidade universal. Apesar disso, tiveram sempre de admiti-lo, na forma de um epifenômeno. Não era possível negar a evidência do espírito, tanto no processo individual da manifestação humana, quanto no processo coletivo, da vida social. Daí o aparecimento da Psicologia, que os mais renitentes materialistas procuraram reduzir à Fisiologia, e o aparecimento da Sociologia, que acabou exigindo a formulação de uma Para-Sociologia, com a Psicologia Social.
Espírito e matéria, como sustenta a ciência espírita, são duas constantes da realidade universal. Por isso, Kardec declara no item 16 do capítulo primeiro de A Gênese: "O Espiritismo e a Ciência se completam reciprocamente. A Ciência, sem o Espiritismo, não pode explicar certos fenômenos, somente pelas leis da matéria. O Espiritismo, sem a Ciência, careceria de apoio e confirmação." Ao fazer essa declaração, Kardec teve em mira o pensamento positivo e a possibilidade de comprovar-se a existência do espírito através dos fenômenos físicos.
Seria possível essa comprovação? Tanto o Espiritismo, como a Ciência Psíquica inglesa e Metapsíquica de Richet já o demonstraram, no século passado. Hoje, coube à Parapsicologia reafirmar aquelas demonstrações e procurar aprofundá-las, dentro das próprias exigências metodológicas das ciências positivas. Que estas exigências não se adaptam à natureza diversa do objeto, como dizia Kardec, também se comprova. As investigações parapsicológicas apenas arranham o litoral do imenso continente do espírito, e a todo momento se emaranham em dúvidas e controvérsias. Mas o espírito se afirma, independentemente das interpretações diversas, como uma realidade fenomênica.
Parece haver uma contradição nessa curiosa posição da fenomenologia paranormal. Mas a contradição decorre apenas da posição mental dos pesquisadores. Porque, se a realidade se constitui de espírito e matéria, e se o espírito se manifesta no existencial através da matéria, a própria realidade nada mais é do que uma manifestação paranormal. Tudo quanto existe é fenômeno, mas o é em função do número kantiano, da essência espiritual que se manifesta na existência. Dizer, pois, que o Espiritismo, em vez de espiritualizar os homens, materializa espíritos, é simplesmente sofismar. Não se pode espiritualizar os homens sem lhes dar a consciência de sua natureza espiritual, não através de uma imposição dogmática, hoje inadequada e perigosa, - que leva a maioria das pessoas à dúvida ou ao ceticismo - mas através da prova científica.
Como ciência do espírito, e portanto do elemento espiritual constitutivo do Universo, o Espiritismo procede de maneira analítica, no plano fenomênico. Mas, ao se elevar às conclusões indutivas, atinge, natural e fatalmente, o plano da síntese. É esse o motivo porque Richet considerou Kardec excessivamente crente, ingênuo, precipitado. Para o fisiologista que era Richet, a síntese das verificações fenomênicas não poderia jamais superar o plano da realidade fisiológica. Teria de ser uma síntese parcial, uma conclusão tirada apenas dos dados positivos, que no caso seriam os dados materiais da investigação. Para o espírita Kardec, dava-se exatamente o contrário. A síntese tinha de ser completa, uma vez que os dados materiais revelavam a presença do espiritual, a sua manifestação.
Impõe-se, neste caso, a observação de Descartes, de que é mais fácil conhecermos o nosso espírito do que o nosso corpo. A realidade espiritual nos é mais acessível, porque é a da nossa própria natureza. A realidade material é-nos estranha e quase inacessível. Quando o cientista da matéria observa os fenômenos, procurando explicações no plano dos seus conceitos habituais, acaba emaranhando-se nas dúvidas e perplexidades que aturdiram tantos investigadores. Quando, porém, como no caso de William Crookes ou Alfred Russell Wallace, o cientista da matéria não se esquece da sua natureza espiritual, a realidade transparece nos dados materiais da investigação.
Nosso conhecimento das coisas materiais é extremamente mutável, em virtude da própria natureza mutável dessas coisas. Mas nosso conhecimento de nós mesmos, ou das coisas espirituais, é estável, e podemos mesmo considerá-lo imutável. Por que esse conhecimento nos é dado por intuição direta, por uma percepção que coincide com a própria natureza do percipiente. Sujeito e objeto se confundem no processo da relação cognitiva. Tocamos de novo o problema que dividiu os filósofos jônicos e eleatas, na Grécia clássica: a realidade móvel de Heráclito e a estável de Zenon. O que nos mostra, mais uma vez, a acuidade intuitiva dos gregos, pois os dois aspectos universais continuam a aturdir-nos.
Certas pessoas querem negar a natureza científica do Espiritismo, por considerarem a "crença" espiritual uma simples superstição. Alegam que desde as eras mais remotas os homens acreditaram em espíritos. Mas não é o fato de sempre haverem acreditado o que importa, e sim o fato das próprias investigações científicas modernas confirmarem essa crença. Enquanto, por exemplo, a concepção geocêntrica do universo, tão arraigada, teve de modificar-se, diante da evidência científica, a concepção espiritual do homem, pelo contrário, mostrar-se irredutível. A ciência espírita só tem motivos para firmar-se nos seus conceitos, e não para ceder aos conceitos mutáveis das ciências materiais.
SEMENTES DE FOGO
Podemos dizer, diante da validade dos princípios espirituais, afirmados e reafirmados através do tempo, como dizia Descartes: "temos em nós sementes de ciências, como o sílex tem sementes de fogo". Kardec citou, na Introdução de O Evangelho Segundo o Espiritismo, Sócrates e Platão como precursores da Doutrina. Essa citação não nos impede, pelo contrário nos estimula, a verificar a existência de outros precursores no campo da ciência e da filosofia, antigas e modernas. Entre eles, não há dúvida que devemos colocar René Descartes, na própria França em que surgiria mais tarde o Consolador.
Na noite de 10 para 11 de novembro de 1619, Descartes, então jovem soldado acampado em Ulm, na Alemanha, sentiu-se tomado por intensas agitações. Seu amigo, biógrafo e correspondente, o Abade Baillet, diria mais tarde que ele: "entregou-se a uma espécie de entusiasmo, dispondo de tal maneira do seu espírito já cansado, que o pôs em estado de receber as impressões dos sonhos e das visões". De fato, Descartes, que se preocupava demasiado com a incerteza dos conhecimentos humanos, transmitidos tradicionalmente, deitou-se para dormir e teve nada menos de três sonhos, que considerou bastante significativos. O mais curioso é que esses sonhos já lhe haviam sido preditos pelo Demônio, que à maneira do que se verificava com Sócrates, o advertia de coisas por acontecer.
A importância desses sonhos, como sempre acontece quando se trata de ocorrências paranormais, não foi até hoje apreciada pelos historiadores e pelos intérpretes do filósofo. Mas Descartes declarou que eles lhe haviam revelado "os fundamentos da ciência admirável", uma espécie de conhecimento universal, válido para todos os homens e em todos os tempos. Essa ciência não seria elaborada apenas por ele, pois tratava-se de "uma obra imensa, que não poderia ser feita por um só". Comentando o episódio, acentua Gilbert Mury "Esse homem voluntarioso e frio tem qualquer coisa de um profeta. Anuncia a Boa Nova. Escolheu a rota da sabedoria, e nela permanecerá."
Descartes sentiu-se de tal maneira empolgado pelos sonhos que acreditou haver sido inspirado pelo Espírito da Verdade. O Abade Baillet registra esse fato em sua biografia do filósofo. Foi tal a clareza da intuição recebida, em forma onírica, que Descartes se considerou capaz de pulverizar a velha e falsa ciência escolástica, que lhe haviam impingido desde criança. Pediu a Deus que o amparasse, que lhe desse forças para realizar a tarefa que lhe cabia, na grande obra a ser desenvolvida. Rogou a Deus que o confirmasse no propósito de elaborar um método seguro para a boa direção do espírito humano. E desse episódio originou-se toda a sua obra, que abriu os caminhos da ciência moderna.
Não tinha Descartes, nessa ocasião, mais do que 23 anos .
Julgou-se, por isso mesmo, demasiado jovem para tão grande e perigosa empreitada. Não obstante, como um verdadeiro vidente, empenhou, dali por diante, todos os seus esforços, no sentido de adquirir conhecimentos e condições para o trabalho entrevisto. E dezoito anos depois lançou o "Discurso do Método", que rasgaria os novos caminhos da ciência. Cauteloso, diante dos perigos que ameaçavam os pensadores livres da época, Descartes não deixou, entretanto, de cumprir o seu trabalho, que Espinosa prosseguiria mais tarde, e que mais tarde ainda se completaria com a dedicação de Kardec.
A epopéia do "cógito", realizada no silêncio da meditação é uma indicação de rumos à nova ciência. Descartes mergulhou em si mesmo, negando toda a realidade material, inclusive a do próprio corpo, na procura de alguma realidade positiva, que se afirmasse por si mesma, de maneira indubitável. Foi então que descobriu a realidade inegável do espírito, proclamando, no limiar da nova era: "Cógito, ergo sum", ou seja: "Penso, logo existo." E no mesmo instante em que reconheceu essa verdade, julgou-se isolado do universo, perdido em si mesmo. Só podia afirmar a sua própria existência. Nada mais sabia, nem podia saber.
A maneira por que Descartes retoma contato com a realidade exterior é outra indicação de rumos. Descobre no fundo do "cógito", no seu próprio pensamento, a realidade suprema de Deus. Essa descoberta lhe devolve o Universo perdido. O filósofo da negação se converte no cientista da afirmação. Deus existe e o Universo é real. Espinosa escreverá a "Ética", mais tarde, sua obra máxima, a partir de uma premissa fixada por Descartes: a existência de Deus. É fácil compreendermos que a ciência admirável tinha um fundamento sólido, poderoso e amplo, que a ciência materialista rejeitou posteriormente. Mas, depois disso, quando a ciência admirável conseguiu, apesar da repulsa dos homens, novamente firmar-se em França, o fez de braços abertos para todos os fragmentos em que se partira a ciência da matéria.
Este é um tema que os estudiosos do Espiritismo precisam desenvolver. Num curso de introdução doutrinária, é bom que o coloquemos, a título de orientação para os estudantes e de sugestão para as suas futuras investigações. A chamada revolução cartesiana foi precursora da revolução espírita. A ciência admirável de Descartes é a mesma ciência espiritual de Kardec, ainda em desenvolvimento, por muito tempo, em nosso planeta.
J. Herculano Pires
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