Ceticismo é uma pretensa atitude do espírito que erige a dúvida em norma geral, segundo a qual nenhuma certeza está ao nosso alcance, nem no domínio experimental, nem no campo racional. A rigor, o ceticismo não deveria tomar parte no debate do problema do conhecimento, visto que ele mesmo, pela posição que sustenta, adotando a epochè, elimina-se do terreno da disputa. É, assim, uma espécie de intruso nos problemas críticos da verdade, da certeza científica e da objetividade do conhecimento. Hoje, praticamente, tal doutrina não recruta mais adeptos, pelo menos na sua forma radical, seja o ceticismo universal, absoluto.
Podemos resumir os argumentos do ceticismo assim:
1º) Qual a garantia objetiva de que o mundo, no qual se desenvolve o nosso pensamento, seja de consistência diferente do ilusório, que construimos os nossos sonhos? Ora, quando sonhamos, acreditamos na realidade desse mundo sonhado, mas quando despertamos reconhecemos o nosso evidente erro. E como saber se o mundo real é de natureza diferente do ilusório, ou seja, do por nós sonhado? Quem sabe se um dia não despertaremos do nosso sonho atual relativo à concepção do mundo real e não perceberemos o erro secular em que temos sucessivamente incorrido?!... Os nossos devaneios, então, poderão ser naturalmente diluidos, desfeitos!
2º) Pretendendo demonstrar a impossibilidade do pensamento, raciocinam os céticos ainda assim: ora, para distinguir o que é certo do que é errado, recorremos ao testemunho da razão, isto é, ao nosso árbitro supremo, ao nosso juiz infalível: a razão. Muito bem. Mas quem é que vai julgar esse juiz? E quem pode garantir que não seja esse suposto juiz a fonte de todos os enganos, de todas as mistificações? Acontece que não dispomos de um tribunal no qual se faça submeter a razão. E nesse caso, a razão pode ser juíza de si mesma, apresentando-se, por isso mesmo, sem títulos, sem credenciais no debate sustentado. Com efeito, os dogmáticos, que admitem a certeza e o valor da razão como instrumento hábil de conhecer, se esquecem de que, justamente, é a razão que está sendo levada à barra do Tribunal como ré, sentando-se no banco próprio e fazendo-a juíza de si mesma! Logo, o dogmatismo comete um erro fundamental, logicamente chamado de “Petitio principie”. Está num círculo vicioso. É o argumento do Dialelo e que Montagne sintetiza nesta frase histórica: “Nous sommes au rouet” voltamos sempre ao ponto de partida. “Curiosa justiça” – assinala ainda Montagne – “que um rio delimita”; não há crime que no decorrer dos séculos não tivesse seu lugar na história da justiça. Verdade aquém dos Pirineus e erro dos Pirineus! Francisco Sanches – o filósofo brancarense – seguiu-lhe as pegadas, tentando inutilmente invalidar o dogmatismo filosófico. Suas idéias estão impregnadas dum ceticismo superado.
O Ceticismo às vezes se apresenta mitigado sob a denominação de probabilismo. A verdade, segundo esta doutrina, não está ao nosso alcance, mas por falta dela, podemos pelo menos vislumbrar, conhecer o verossímil!
E podemos agora argumentar que o Ceticismo é uma doutrina verdadeiramente insustentável, estribado nos próprios argumentos dos seus defensores. Vejamos: os céticos afirmam que “nunca afirmam nada e que, mesmo afirmando, o que não afirma, nada afirmam”! Ora, esta frase nada mais é que uma justaposição de palavras que não exprime nenhum pensamento, que nada tem de inteligível. Pois, que significa a frase “mesmo afirmando eu nada afirmo?”. Frase sem correspondência no pensamento, que o espírito não pode realizar e que, no fundo, constitui uma violação do princípio de identidade, que tem como caracteres a evidência, a necessidade e a universalidade. Assim é que, afirmando, afirmo, e, não afirmando, nada afirmo. É crucial e lógico. Aliás, em primeiro lugar, o ceticismo, na sua modalidade radical, na realidade, nunca prevaleceu e não pode prevalecer jamais. Pois, como observa Aristóteles, só um vegetal poderia realizar as condições exigidas pelo verdadeiro ceticismo, das quais a primeira e principal consiste em não pensar. Mas pelo menos o vegetal – acrescenta, irônico, Aristóteles – nada diz: ele permanece calado!... Aliás – observa ainda o Estagirita – gostaria de saber porque os céticos, no momento de almoçar, não se lançam num abismo! Esta atitude dos chamados céticos, pelo menos, revela uma coisa e que eles sabem distinguir perfeitamente um almoço de um abismo! Tem razão o mestre de Teofrasto.
Não há um pensamento que não pense nem um saber que não saiba. Assim, o ceticismo será um novo sistema sofístico ou um corolário dele.
Em segundo lugar, o outro argumento dos céticos – “Petitio principie” – parece voltar-se contra o próprio ceticismo, pois que rejeita o valor do conhecimento, especialmente o racional, mas é justamente raciocinando que ele rejeita o valor do raciocínio, já que é em nome dele que ele o repudia. É raciocinando que ele prova, também, não acreditar no próprio raciocínio. Aliás, a frase de Montagne “Nous sommes au rouet”, repousa num erro lógico que esse fideísta ou cético moderado atribui ao dogmatismo. Realmente, para o ceticismo, só é possível aderir ao valor da razão depois da demonstração desse valor. Ora, sendo isso impossível, “nous sommes au rouet”! Mas aí é que está o erro, pois resta saber se tudo deve ser demonstrado, isto é, por exemplo, se aderimos ao princípio de identidade em conclusão de uma demonstração preliminar. Não é verdadeiro somente o demonstrável. A propósito, já sabiamente sentenciava Aristóteles: “O princípio de uma demonstração não é uma demonstração”. Quer dizer que na série de raciocínios e preposições que forma um encadeamento de uma preposição, chegamos sempre ao demonstrável.
Quanto ao probabilismo, já Santo Agostinho fez, em termos conscienciosos, uma crítica desta doutrina. Como admitir – pergunta Santo Agostinho – o verossímil, isto é, o que parece verdade? Como se pode falar de uma semelhança com aquilo que, por definição, não podemos saber? Logo, pelo exposto, fica provada e explicada a ausência do ceticismo na discussão do problema crítico, desaprovando a atitude de alguns autores, insistindo em fazer intervir o ceticismo no problema gnosiológico. O Ceticismo aconselha o epochè – a suspensão do juízo, mas julga, ao negar possibilidade do conhecimento. A escola cética procurou demonstrar a ataraxia ou tranqüilidade do espírito, que é condição de felicidade (princípio da indiferença universal). Pretendia que nada fosse certo!
HISTÓRIA DO CETICISMO
Tivemos Enesidemo de Creta, que teve escola em Alexandria e criticou a noção de causalidade. Sexto Empírico é ainda o cético ligado ao pensamento grego, tendo escrito as “Hypotiposes Pirrónicas” e “Contra Matemáticos”.
Ceticismo prático (Timão) – ao probabilismo (Academia Nova), segundo Brochart, em sua obra “Os Céticos Gregos”. O mais radical dos céticos, no entanto, é Pirro, que em muitos passos de sua doutrina, lembra Sócrates. Disse muito e escreveu pouco. Contribuições posteriores foram acumuladas à obra pessoal de Pirro. Platão já argumentava: “Tu sabes o que dizes ou não sabes. Se sabes tens conhecimento; se não sabes então és um insensato”. É um argumento contra o ceticismo, total. Os sofistas foram precursores do movimento cético. Era, ou o relativismo (Protágoras) ou niilismo (Górgias). A rigor, o ceticismo tinha, em geral, um caráter mitigado e não radical. O ceticismo é um sistema que nega à inteligência a possibilidade de atingir a verdade. É, ou universal, ou particular. O absoluto é o Pirrônico. O mitigado é o acadêmico de Carnéades e Argesiláu. Existe o ceticismo particular ou agnosticismo. O ceticismo positivista é um ceticismo particular. A atitude de destruir o dogmatismo já é uma posição insustentável. O cético radical tem que suspender o julgamento, isto é, fazer a epochè Daí a impossibilidade da discussão. Os céticos apresentaram dez tropes (aporias), mais tarde reduzidas a cinco por Enesídimo:
1.A diversidade dos animais;
2.As diferenças entre os homens;
3.As diversidades do sentido;
4.As circunstâncias;
5.As situações, a distância, os lugares;
6.As misturas;
7.As variações quantitativas;
8.Relação;
9.A freqüência e a rareza;
10.Os costumes, as leis e as opiniões.
Essas são as razões pelas quais a verdade não é possível para o cético. O Ceticismo vai sofrer a reação do célebre bispo de Hipona.
Husserl, com a sua fenomenologia, adota a epochè, e por isso mesmo, sua posição é a de um cético moderado, pondo a existência entre parêntesis. Heiddeger, seu discípulo, de quem se separa, vai ao plano das existências. Daí a fenomenologia existencialista.
Convém não confundir a epochè com a dúvida crítica de Kant nem com a dúvida metódica de Santo Agostinho e Descartes. Kant, provisoriamente, estuda a possibilidade da razão, (CRÍTICA DA RAZÃO PURA), para conceber a verdade. A dúvida cartesiana é a instrumental e provisória. Com esta espécie de dúvida estão noventa e nove por cento dos filósofos de todos os tempos, podendo incluir-se nesse número o célebre Claud Bernard.
Heráclito, por se recusar a aceitar o testemunho dos sentidos, é apontado como partidário do ceticismo absoluto, embora essa posição não seja assinalada por muitos autores. Evidentemente, afirmava o efesino: “Tudo escorre, tudo flui, nada pára; nada é, tudo está sendo. O universo é como um rio: ninguém se banha duas vezes nas águas do mesmo rio”! O que existe de constante é a mutabilidade, a transformação.
Parmênides – o antípoda intelectual de Heráclito – quando negava o movimento, pregava o ceticismo. Também negava o testemunho evidente dos sentidos. E daí a reação sofística contra ambos. Mas os sofistas, conquanto demolidores, provocaram a maravilha da reação socrática. Sem eles, Sócrates não seria compreendido!...
Carlos Bernardo Loureiro
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