09 setembro 2011

NÃO VIM TRAZER A PAZ, MAS A ESPADA


Não julgueis que vim trazer paz a Terra; não vim
trazer-lhe paz, mas espada; porque vim separar o homem contra seu pai,
e a filha contra sua mãe, e a nora contra sua sogra; e os inimigos do
homem serão os seus mesmos domésticos. (Mateus, X: 34-36).
Eu vim trazer fogo à Terra, e que quero eu, senão que
ele se acenda? Eu, pois, tenho de ser batizado num batismo, e quão
grande não é a minha angústia, até que ele se cumpra? Vós cuidais que
eu vim trazer paz à Terra? Não, vos digo eu, mas separação; porque de
hoje em diante haverá, numa mesma casa, cinco pessoas divididas, três
contra duas e duas contra três. Estarão divididas: o pai contra o
filho, e o filho contra seu pai; a mãe contra a filha, e a filha
contra a mãe; a sogra contra sua nora, e a nora contra sua sogra.
(Lucas, XII: 49-53)

Foi mesmo Jesus, a personificação da doçura e da
bondade, ele que não cessava de pregar o amor do próximo, quem disse
estas palavras: Eu não vim trazer a paz, mas a espada; vim separar o
filho do pai, o marido da mulher, vim lançar fogo na Terra e tenho
pressa que ele se acenda? Essas palavras não estão em flagrante
contradição com o seu ensino? Não é uma blasfêmia atribuir-se a
linguagem de um conquistador sanguinário e devastador? Não, não há
blasfêmia nem contradição nessas palavras, porque foi ele mesmo quem
as pronunciou, e elas atestam a sua elevada sabedoria. Somente a
forma, um tanto equívoca, não exprime exatamente o seu pensamento, o
que provocou alguns enganos quanto ao seu verdadeiro sentido. Tomadas
ao pé da letra, elas tenderiam a transformar a sua missão,
inteiramente pacífica, numa missão de turbulências e discórdias,
conseqüência absurda, que o bom senso rejeita, pois Jesus não podia
contradizer-se. (Ver cap. XIV, nº 6).

Toda idéia nova encontra forçosamente oposição, e não
houve uma única que se implantasse sem lutas. A resistência, nesses
casos, está sempre na razão da importância dos resultados previstos,
pois quanto maior ela for, maior será o número de interesses
ameaçados. Se for uma idéia notoriamente falsa, considerada sem
conseqüências, ninguém se perturba com ela, e a deixam passar,
confiantes na sua falta de vitalidade. Mas se é verdadeira, se está
assentada em bases sólidas, se é possível entrever-lhe o futuro, um
secreto pressentimento adverte os seus antagonistas de que se trata de
um perigo para eles, para a ordem de coisas por cuja manutenção se
interessam. E é por isso que se lançam contra ela e os seus adeptos. A
medida da importância e das conseqüências de uma idéia nova nos é
dada, portanto, pela emoção que o seu aparecimento provoca, pela
violência da oposição que desperta, e pela intensidade e a
persistência da cólera dos seus adversários.

Jesus vinha proclamar uma doutrina que minava pelas
bases a situação de abusos em que viviam os fariseus, os escribas e os
sacerdotes do seu tempo. Por isso o fizeram morrer, julgando matar a
idéia com a morte do homem. Mas a idéia sobreviveu, porque era
verdadeira; desenvolveu-se, porque estava nos desígnios de Deus; e
nascida numa pequena vila da Judéia, foi plantar a sua bandeira na
própria capital do mundo pagão, em face dos seus inimigos mais
encarniçados, daqueles que tinham o maior interesse em combatê-la,
porque ela subvertia as crenças seculares, a que muitos se apegavam,
mais por interesse do que por convicção. Era lá que as lutas mais
terríveis esperavam os seus apóstolos; as vítimas foram inumeráveis;
mas a idéia cresceu e saiu triunfante, porque superava, como verdade,
as suas antecessoras.

Observe-se que o Cristianismo apareceu quando
Paganismo declinava, debatendo-se contra as luzes da razão.
Convencionalmente ainda o praticavam, mas a crença já havia
desaparecido, de maneira que apenas o interesse pessoal o sustinha.
Ora, o interesse é tenaz, não cede nunca à evidência, e irrita-se
tanto mais, quanto mais peremptórios são os raciocínios que se lhe
opõem e que melhor demonstram o seu erro. Bem sabe que está errado,
mas isso pouco lhe importa, pois a verdadeira fé não lhe interessa;
pelo contrário, o que mais o amedronta é a luz que esclarece os cegos.
O erro lhe é proveitoso, e por isso a ele se aferra, e o defende.

Sócrates não formulara também uma doutrina, até certo
ponto, semelhante à do Cristo? Por que, então, não prevaleceu naquela
época, no seio de um dos povos mais inteligentes da Terra? Porque os
tempos ainda não haviam chegado. Ele semeou em terreno não preparado:
o paganismo não estava suficientemente gasto. Cristo recebeu a sua
missão providencial no tempo devido. Nem todos o homens do seu tempo
estavam à altura das idéias cristãs, mas havia um clima geral de
aptidão para assimilá-las, porque já se fazia sentir o vazio que as
crenças vulgares deixavam na alma. Sócrates e Platão abriram o caminho
e prepararam os Espíritos. (Ver na Introdução, parágrafo IV: Sócrates
e Platão, precursores da idéia cristã e do Espiritismo).

Os adeptos da nova doutrina, infelizmente, não se
entenderam sobre a interpretação das palavras do Mestre, na maioria
veladas por alegorias e expressões figuradas. Daí surgirem, desde o
princípio, as numerosas seitas que pretendiam, todas elas, a posse
exclusiva da verdade, e que dezoito séculos não conseguiram pôr de
acordo. Esquecendo o mais importante dos preceitos divinos, aquele de
que Jesus havia feito a pedra angular do seu edifício e a condição
expressa da salvação: a caridade, a fraternidade e o amor do próximo,
essas seitas se anatematizaram reciprocamente, arremeteram-se umas
contra as outras, as mais fortes esmagando as mais fracas, afogando-as
em sangue, ou nas torturas e nas chamas das fogueiras. Os cristãos
vencedores do paganismo, passaram de perseguidos a perseguidores. Foi
a ferro e fogo que plantaram a cruz do cordeiro sem mácula nos dois
mundos. É um fato comprovado que as guerras de religião foram mais
cruéis e fizeram maior número de vítimas que as guerras políticas, e
que em nenhuma outra se cometeram tantos atos de atrocidade e de
barbárie.

Seria a culpa da doutrina do Cristo? Não, por certo, pois
ela condena formalmente toda violência. Disse ele em algum momento aos
seus discípulos: Ide matar, queimar, massacrar os que não acreditarem
como vós? Não, pois que lhes disse o contrário: Todos os homens são
irmãos, e Deus é soberanamente misericordioso; amai o vosso próximo;
amai os vossos inimigos; fazei bem aos que vos perseguem. E lhes disse
ainda: Quem matar com a espada perecerá pela espada. A
responsabilidade, portanto, não é da doutrina de Jesus, mas daqueles
que a interpretaram falsamente, transformando-a num instrumento a
serviço das suas paixões, daqueles que ignoram estas palavras: O meu
Reino não é deste mundo.

Jesus, na sua profunda sabedoria, previu o que devia
acontecer. Mas essas coisas eram inevitáveis, porque decorriam da
própria inferioridade da natureza humana, que não podia ser
transformada subitamente. Era necessário que o Cristianismo passasse
por essa prova demorada e cruel, de dezoito séculos, para demonstrar
toda a sua pujança: porque, apesar de todo o mal cometido em seu nome,
ele saiu dela puro, e jamais esteve em causa. A censura sempre caiu
sobre os que dele abusaram, pois a cada ato de intolerância sempre se
disse: Se o Cristianismo fosse melhor compreendido e melhor praticado,
isso não teria acontecido.

Quando Jesus disse: Não penseis que vim trazer a paz,
mas a divisão – seu pensamento era o seguinte:

“Não penseis que a minha doutrina se estabeleça
pacificamente. Ela trará lutas sangrentas, para as quais o meu nome
servirá de pretexto. Porque os homens não me haverão compreendido, ou
não terão querido compreender-me. Os irmãos, separados pelas suas
crenças, lançarão a espada um contra o outro, e a divisão se fará
entre os membros de uma mesma família, que não terão a mesma fé. Vim
lançar o fogo na Terra, para consumir os erros e os preconceitos, como
se põe fogo num campo para destruir as ervas daninhas, e anseio porque
se acenda, para que a depuração se faça mais rapidamente, pois dela
sairá triunfante a verdade. A guerra sucederá a paz; ao ódio dos
partidos, a fraternidade universal; às trevas do fanatismo, a luz da
fé esclarecida” .

“Então, quando o campo estiver preparado, eu vos enviarei
o Consolador, o Espírito da Verdade, que virá restabelecer todas as
coisas, ou seja, que dando a conhecer o verdadeiro sentido das minhas
palavras, que os homens mais esclarecidos poderão enfim compreender,
porá termo à luta fratricida que divide os filhos de um mesmo Deus.
Cansados, afinal, de um combate sem solução, que só acarreta desolação
e leva o distúrbio até mesmo ao seio das famílias, os homens
reconhecerão onde se encontram os seus verdadeiros interesses, no
tocante a este e ao outro mundo, e verão de que lado se acham os
amigos e os inimigos da sua tranqüilidade. Nesse momento, todos virão
abrigar-se sob a mesma bandeira: a da caridade, e as coisas serão
restabelecidas na Terra, segundo a verdade e os princípios que vos
ensinei”.

O Espiritismo vem realizar, no tempo determinado, as
promessas do Cristo. Não o pode fazer, entretanto, sem destruir os
erros. Como Jesus, ele se defronta com o orgulho, o egoísmo, a
ambição, a cupidez, o fanatismo cego, que, cercados nos seus últimos
redutos, tenta ainda barrar-lhe o caminho, e levantam contra ele
entraves e perseguições. Eis por que ele também é forçado a combater.
Mas a época das lutas e perseguições sangrentas já passou, e as que
ele tem de suportar são todas de ordem moral, sendo que o fim de todas
elas se aproxima. As primeiras duraram séculos; as de agora durarão
apenas alguns anos, porque a luz não parte de um só foco, mas irrompe
de todos o ponto do globo, e abrirá mais depressa os olhos aos cegos.

Aquelas palavras de Jesus devem ser entendidas,
portanto, como referentes à cólera que, segundo previa, a sua doutrina
iria suscitar; aos conflitos momentâneos, que surgiram como
conseqüência; às lutas que teria de sustentar, antes de se firmar,
como aconteceu com os hebreus antes de sua entrada na Terra Prometida;
e não como um desígnio premeditado, de sua parte, de semear a desordem
e a confusão. O mal devia provir dos homens, e não dele. A sua posição
era a do médico que veio curar, mas cujos remédios provocam uma crise
salutar, revolvendo os humores malignos do enfermo.

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