28 junho 2010

DISCIPLINA FRATERNA

O problema da disciplina no Centro Espírita é dos mais melindrosos e deve ser encarado entre as coordenadas da ordem e da tolerância. Não se pode estabelecer e manter no Centro uma disciplina rígida, de tipo militar.
O Centro é, além de tudo o que já vimos, um instrumento coordenador das atividades espirituais. No esquema das suas sessões teóricas e práticas a questão do horário é imperiosa, mas não deve sobrepor-se às exigências do amor fraterno.
Não é justo deixarmos fora da sessão companheiros dedicados ou necessitados, porque chegaram dois ou três minutos atrasados. Vivemos num mundo material e não espiritual, em que as pessoas lutam com dificuldades várias no tocante à locomoção, aos embaraços de compromissos diversos, e é justo que se dê uma pequena margem de tolerância no horário.
Essa margem não deve também ser estabelecida com rigor, mas deixada ao critério do dirigente dos trabalhos, que saberá dosar as coisas de acordo com as conveniências.
O rigor exagerado na questão de horário, mormente nas cidades mais populosas, causa aborrecimentos e mágoas a pessoas sensíveis que, depois de aflição e correria para chegar na hora certa, viram-se impedidas de participar da reunião por alguns segundos ou minutos, Temperando-se as exigências da ordem cronológica com o dever da atenção aos companheiros podemos evitar aborrecimentos perfeitamente superáveis.
Claro que esse é um problema a ser sempre esclarecido nas reuniões, para que todos possam ter conhecimento da flexibilidade possível no horário. O simples fato de haver essa flexibilidade, já tira à disciplina o seu aspecto opressivo.
Essa mesma dosagem de ordem e tolerância deve ser aplicada a outros problemas, de maneira a assegurar-se, o mais possível, um ambiente geral sem prevenções, que muito ajudará na realização dos trabalhos.
Tratamos das almas frágeis no capítulo anterior. Devemos agora tratar das almas fortes, as mais apegadas ao problema disciplinar. As almas fortes são aquelas que procedem de linhas evolutivas em que os espíritos se aperfeiçoam no uso da independência e da coragem .
Por isso mesmo trazem consigo um condicionamento disciplinar que não aceita facilmente as concessões a que aludimos. Uma palavra rude de uma alma forte, embora não intencional, pode ferir a susceptibilidade de uma alma frágil, prejudicando-a no seu equilíbrio por uma insignificância.
Ora, segundo a regra geral das relações humanas, o forte deve proteger e amparar o fraco, para ajudá-lo a se fortalecer. Os dirigentes de trabalhos devem cuidar de evitar esses pequenos atritos que não raro têm conseqüências muito maiores do que se pensa. Por outro lado, as almas fortes precisam controlar os seus impulsos pelo pedido consciencial da fraternidade.
Há pessoas que, por se sentirem mais fortes, decisivas e poderosas que as outras, embriagam-se com a ilusão do poder, desrespeitando os direitos alheios e sobrepondo-se, com rompança às opiniões dos outros.
Atitudes dessa natureza, no meio espírita e no Centro, causam má impressão e constrangimento no ambiente, fomentado malquerenças desnecessárias. Em se tratando de Espiritismo, tudo se deve fazer para manter-se um ambiente de compreensão e fraternidade, sem exageros, tocado o quanto possível de alegria e camaradagem.
Num ambiente assim arejado, desprovido de tensões, a espiritualidade flui com facilidade e os Espíritos orientadores encontram mais oportunidades de tocar os corações e iluminar as mentes.
Por menor que seja, o Centro dispõe sempre de mais de um setor de atividades. Deve-se fazer o possível para que em todos eles reine um ambiente fraterno, que é o mais poderoso antídoto dos desentendimentos.A disciplina desses trabalhos, mesmo quando exija maior severidade, como no caso das sessões de desobsessão, deve ser tocada pela boa-vontade e a compreensão fraterna. Sem isso, particularmente conseguiríamos resultados satisfatórios.
Mas a franqueza também é elemento importante na boa solução dos problemas, Quando necessário, o dirigente deve chamar o obsedado em particular e expor-lhe com clareza o que observou a seu respeito, aconselhando-o a mudar de comportamento par poder melhorar.
A verdade deve estar presente em todos os momentos das atividades espirituais, mas a verdade nunca pode ser agressiva, sob pena de produzir o contrário do que se deseja.
Não queremos esmiuçar todos os problemas e todas as situações no funcionamento de um Centro, pois isso seria cansativo e desnecessário. Tocamos apenas em alguns pontos para abrir diretrizes aproveitáveis, segundo a experiência de longos anos nas lides doutrinárias.
Outros, com mais capacidade e mais penetração, poderão complementar o nosso trabalho com suas contribuições. Nosso desejo é apenas ajudar os companheiros que tantas vezes se aturdem com as dificuldades encontradas.
Não propomos regras como possível autoridade, que não somos e ninguém o é, num campo de experiências em que quanto mais se aprofunda mais se tem a aprender.
A disciplina de um Centro Espírita é principalmente moral e espiritual, abrangendo todos os seus aspectos, mas tendo por constante e invariável a orientação e a pureza de intenções.
Os que mais contribuem para o Centro são os que trabalham, freqüentam, estudam e procuram seguir um roteiro de fidelidade à Codificação Kardeciana. Muito estardalhaço, propaganda, agitação só pode prejudicar as atividades básicas e essenciais do Centro, humanitárias e espirituais, portanto recatadas e silenciosas.
Os problemas do Centro são de ordem profunda no campo do espírito. Mas apesar disso não se pode desprezar as oportunidades de divulgação e principalmente de orientação doutrinária para o povo em geral. Não precisamos de aumentar forçadamente os nossos grupos, somos contrários ao proselitismo, sabemos que nem todos podem aceitar os nossos princípios, mas sabemos também que a Verdade deve sempre ser posta ao alcance de todos.
Quem quiser encontrá-la não precisará procurar lugares especiais, deve encontrá-la em qualquer parte em que um jornal, um programa de rádio, um livro, um folheto estiver ao seu alcance. Não convertemos nem devemos tentar converter ninguém, pois, como ensinava Kardec, nem todos estão em condições de afinar-se espiritualmente na compreensão dos problemas novos que o Espiritismo apresenta ao mundo em renovação. Mas aqueles que amadureceram na idade espiritual serão úteis na batalha para o amadurecimento de outros.
A disciplina autoritária e rígida teve a sua função na disciplina dos povos bárbaros após a queda do Império romano. Essa coerção prosseguiu pelos tempos sombrios do Medievalismo. Mas a era da Razão, que surgiu da noite medieval, reivindicou os direitos individuais do homem, na linha ateniense do esclarecimento cultural.
O domínio natural da Igreja esgotou-se nos albores do Renascimento, mas o domínio artificial, fundado nos poderes políticos e econômico-financeiros da organização clerical estenderam-se aos tempos modernos e ainda se exerce, embora enfraquecidos e estropiado, no mundo contemporâneo, em pleno alvorecer da Era Cósmica.
Essa anomalia histórica, nos entrechoques contraditórios da fase de transição, resolve-se aos nossos olhos num desvio violento provocado pelas forças conjugadas dos interesses em jogo, voltando-se para a tradição de Esparta.
A força e a violência se sobrepuseram aos ideais atenienses e o indivíduo esmagado pelo peso das massas acarneiradas refugiou-se na servidão medieval, nas aposições inócuas e na revolta do desespero insensato.
As leis históricas seguem o seu curso regular, mas quando as acumulações dos fatores a-históricos, como os lastros esmagadores dos instintos primitivos, acumulados nos socavãos do inconsciente coletivo, as obrigam a sair dos canais naturais, elas se desviam à procura dos pontos de retorno. A volta a Esparta, que marcou a fase instintiva das explosões totalitárias, mergulhou o mundo no delírio do arbítrio e da violência.
Um terremoto a-histórico rompeu o chão rompeu em que florescia a Belle-Epoque, a fase lírica e romântica que Stephan Zweig descreveu em O Mundo que eu Vi, precipitando no abismo todos os valores culturais e humanistas dos séculos XVII e XIX.
O próprio Zweig imolou-se, a seguir, no desespero do suicídio. Os abismos da Terra lacerada impediram-nos o acesso a Atenas. Mas restou um passagem secreta, um ponte sobre o abismo, sustentada pelas rochas inabaláveis do Evangelho, orientada pelos sinaleiros subjetivos dos arquétipos de Jung nos rumos da transcendência.
Essa ponte era a do Novo Renascimento do homem e do mundo pelas mãos do Cristo. Era o Espiritismo, que das ruínas da catástrofe histórica fazia ressurgir, ainda cambaleante, a figura fantasmal de Lázaro.
O Mundo Contemporâneo é Lázaro redivivo, ainda envolto em mortalha, com a boca amarrada, os braços e os pés atados, mas atendendo ao chamado do Cristo para reintegrar-se no processo histórico interrompido.
Marta e Maria o restabelecem na paz de Betânia, cercada pelas guerras furiosas e as atrocidades produzidas na Terra, no Céu e no Mar pela inconformação e a revolta dos homens. Nessa hora trágica, dantesca (não apenas na imagem do Inferno de Dante, mas na sua própria essência real) a consciência humana desperta para a busca de si mesma.
O Centro Espírita, na sua singeleza, na sua humildade e na sua pobreza – pequenina semente que os abismos ameaçam tragar – sustenta a chama da esperança cristã-humanista e trabalha em silêncio na restauração da verdade.
Solitário, desprezado pela ignorância arrogante é o Centro – o ponto ótico ou visual para o qual convergem todas as possibilidades da Ressurreição do Planeta assassinado. Temos necessidade urgente de compreender esse momento histórico, decifrar os seus signos para que a Esfinge não os devore.
A rotina dos trabalhos do Centro, a monotonia das doutrinações exaustivas, a repetição dos ensinos que chegam a parecer inúteis, a insistência das obsessões agressivas, a inquietação dos que se afastam em busca do socorro ilusório de ciências psíquicas ainda informes e retornam desiludidos e cansados – todo esse ritornelo atordoante pode desanimar os que lutam contra a voragem das trevas. Mas é preciso resistir e continuar, é necessário enfrentar a ignorância petulante dos sábios que ainda não aprenderam a lição socrática da humildade intelectual, do sábio que só é sábio quando sabe que nada sabe.
A hora espírita do Mundo é de agonia e desespero. Mas foi agonizando na cruz, injustiçado pelos sábios do seu tempo, que Jesus nos ensinou a lição da ressurreição e da imortalidade espiritual.
O Centro Espírita é a cruz da paciência que Jesus nos deixou como herança do seu martírio. Ele nos livra da cruz que o Mestre enfrentou entre ladrões, salvando, morrendo com eles para salvá-los – um através da conformação difícil da dor, outro através da revolta e da indignação que levam ao arrependimento e à reparação.
Por isso a disciplina do Centro não pode ser a dos homens, mas a dos anjos que servem ao Senhor tatalando no Céu as asas simbólicas da Esperança. Deixemos de lado a disciplina exigente, para podermos manter no Centro a disciplina do amor e da tolerância.
Não lidamos com soldados e guerreiros, mas com doentes da alma. Nossa disciplina não deve ser exógena, imposta de fora pela violência, mas a do coração. Tem de ser a disciplina endógena, que nasce da consciência lentamente esclarecida aos chamados de Deus em nossa acústica da alma.
A evolução humana se processa no concreto em direção ao abstrato, o que vale dizer da matéria para o espírito ou do corpo para a alma. Na linguagem platônica diríamos: do sensível para o inteligível. Na era cósmica que se inicia com as façanhas da Astronáutica essa evolução se define em termos de ciência e tecnologia.
O homem das cavernas saiu de sua toca de bicho para dominar a Terra, edificar casas, palácios e torres, templos que apontam para as estrelas, e agora, depois de se librar na atmosfera com asas e hélices, projeta-se além da estratosfera, mergulha no Cosmos, pousa na Lua e regressa à Terra, servindo-se de propulsores terrenos e das forças da gravidade, como se tivesse nascido nos espaços siderais e não do barro do planeta.
Quem não vê nesse esquema gigantesco e dinâmico o roteiro da evolução humana? De outro lado, rompemos os véus misteriosos de Ísis nas pesquisas da Física, em que a matéria nos revela as estruturas atômicas da realidade aparentemente compacta e opaca, que se mostra fluída e transparente, e nas pesquisas psíquicas descobrimos que a nossa natureza não é concreta, mas abstrata, pois não somos corpos, mas espíritos.Sobre os escombros do passado em ruínas, das civilizações mortas, das certeza materiais e sólidas transformadas em pó e ante a ameaça dos cogumelos atômicos desintegrantes, vemos de maneira inegável que a essência de toda a realidade tangível é na verdade intangível.
Reconhecemos os enganos produzidos pela ilusão dos sentidos materiais em nosso senso abstrato e somos obrigados a compreender que malbaratamos o tempo nas encarnações desvairadas. As fachadas suntuosas das catedrais, os gigantescos edifícios da Instituições científicas, os Edifícios do Saber em todos os campos – todo esse acervo de grandiosidade efêmera se reduz a esboços de uma verdade simples que se escondia por milênios na humildade de um casebre de arrabalde ou de uma choupana da roça – O CENTRO ESPÍRITA.
Só ali encontramos, entre criaturas anônima, na intuição dos simples, a Verdade que buscávamos. Assim também aconteceu nas gr4andes civilizações do passado, que renegaram os ensinos de um carpinteiro galileu.
Na penumbra do Centro Espírita, suspeita para os sábios e os poderosos, Deus escondera a chave do mistério.



Autor: J. Herculano Pires



Livro: O Centro Espírita

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