18 maio 2010

SURREALISMO E ESPIRITISMO

Os filmes sobre Chico Xavier e Bezerra de Menezes assim como a novela da Rede Globo estão aumentando o número de pessoas que buscam um passe, uma imposição de mãos ou mensagens do além morte nas casas espíritas de todo o Brasil. Numa reportagem sobre o tema, publicada na ‘Folha de São Paulo’, o fenômeno foi nomeado como “os espíritas saem do armário”. Segundo dados do IBGE, os espíritas ocupam o 3.º lugar no item das religiões praticadas no Brasil.
Quando uma criança morava visinho a um centro espírita: duas vezes por semana, um grupo de pessoas do bem sentava ao redor de uma longa mesa forrada com linho branco. Era conhecido no bairro como Centro de Mesa Branca – para se diferenciar do terreiro de umbanda que havia no mesmo bairro. Garoto curioso e ecumênico, eu freqüentava os dois.
No Centro de Mesa Branca gostava do ambiente calmo, sereno, à meia luz, onde os adultos estendiam as mãos sobre o branco linho e davam passagem aos espíritos em busca de luz. Os espíritos mais evoluídos ensinavam os caminhos para os jovens espíritos de mortos recentes. Os familiares desesperados em trabalho de luto buscavam uma mensagem de seu ente querido desencarnado. Não me lembro de ver a prática da psicografia naquele centro. A comunicação entre vivos e mortos se realizava na oralidade, não pela escrita. Naquele tempo, e naquelas circunstâncias, a maioria dos médiuns era analfabeta.
Muito tempo depois, no trabalho de pesquisa que realizei sobre o movimento surrealista, descobri que os escritores desse período tiveram grande interesse pela prática da psicografia no kardecismo. Vários deles freqüentaram sessões espíritas com o propósito de identificar esse fenômeno de escrita. Alguns até reproduziam o cenário de um centro espírita para praticar a escrita automática. A relação dos surrealistas, na França da década de 1920, com o kardecismo é um aspecto interessante para pensar esse advento do espiritismo em nossos dias para além da explosão midiática em torno do tema.
De março a junho de 1952, André Breton refez sua trajetória num conjunto de dezesseis entrevistas concedidas a André Parinaud e transmitidas pelo sistema de Radiodifusão Francesa. Transcritas, as ‘Entrevistas’ (Edições Salamandra) são um precioso arquivo sobre o movimento surrealista, narrado por seu protagonista principal. Depois de contar sobre sua admiração entusiasmada por Freud e do encontro que teve com ele em Viena, Breton afirma: “as experiências do sono fazem parte integrante da história do movimento surrealista”. Denominada como ‘estados segundos’, estas experiências de estados hipnóticos, de transe mediúnico, foram resgatadas pelos surrealistas como ato instaurador de uma escrita que escapa à sujeição das percepções sensórias imediatas. Com isso, “tratava-se de devolver o verbo humano às suas inocência e virtude criadora original”.
Os surrealistas encontraram essas experiências de estados segundos na psicografia praticada pelo espiritismo. Não lhes interessava a doutrina espírita por uma questão de princípio: “é impossível a comunicação entre os vivos e os mortos”. A despeito de seu ponto de partida, o espiritismo permitia capturar uma experiência singular: a escrita automática na prática da psicografia. A doutrina revelava certos poderes do espírito no ato da escrita. “Somente o surrealismo, na visão de Breton, pode valorizar o que resta da comunicação mediúnica quando liberta das loucas interpretações metafísicas.”
Breton estabeleceu um critério: “para que a escrita seja verdadeiramente automática, é preciso, com efeito, que o espírito tenha conseguido colocar-se em condições de desapego, quer em relação às solicitações do mundo exterior, quer às preocupações individuais de ordem utilitária e sentimental”. Penso que é um bom critério para assistir ao filme sobre a vida de Chico Xavier: em seus livros psicografados, o mineiro de Uberaba praticou a verdadeira escrita automática.

Marcio Mariguela

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