21 novembro 2009

EMANCIPAÇÃO ESPIRITUAL DO HOMEM

IMANÊNCIA E TRANSCENDÊNCIA - Colocando o problema da evolução humana em termos de imanência e transcendência, segundo a acepção moderna desses vocábulos, podemos compreender melhor a natureza transcendente do horizonte espiritual. Os quatro horizontes que o antecedem: o tribal, o agrícola, o civilizado e o profético, representam o período de imanência do processo evolutivo. Nesse período, de acordo com o "princípio da imanência", de Le Roy, toda a potencialidade espiritual do homem encontra-se em desenvolvimento, tudo o que nele é implícito transita para o explícito. A experiência da magia, dos mitos agrários e da mitologia civilizada, das religiões organizadas e da eclosão profética, nada mais é do que uma seqüência de fases do período imanente, em que o homem acorda em si mesmo as forças latentes da alma, preparando-se para a fase de transcendência que virá com o horizonte espiritual.
Esse é um dos motivos por que a Revelação Cristã se mostra mais poderosa e atuante que as anteriores. Já vimos que o horizonte espiritual aparece com Jesus, com ele se define. Vimos também que Israel representou, mais do que os outros países, o momento em que as forças desenvolvidas no período da imanência atingiram a sua culminância. Assim, o próprio desenvolvimento histórico explica e justifica as afirmações místicas, aparentemente dogmáticas, da supremacia espiritual de Israel e do seu papel de povo eleito. Para a mentalidade mística dos horizontes anteriores, a posição de Israel não poderia ser interpretada senão como uma determinação celeste. A própria alegoria da Aliança confirma isto. O pacto firmado entre Deus e seu povo é a simples divinização de um sistema agrário de compromissos humanos. Mas era através dessa alegoria que os antigos conseguiam entender e explicar uma realidade inexplicável, qual fosse a supremacia espiritual do povo hebraico e o seu dever indeclinável de liderança mundial.
A incompreensão do fato permanece ainda hoje, tanto no seio das religiões cristãos quanto no próprio judaísmo. A expectativa milenária do Messias, e a ambição do domínio universal e absoluto, das seitas cristãs provindas do judaísmo, nada mais são do que resíduos do período de imanência. A destinação messiânica de Israel não foi e não é encarada no seu sentido histórico, mas no seu antigo aspecto teológico. Daí a razão do povo eleito esperar ainda o cumprimento da promessa divina, e das seitas cristãs modernas, que se julgam herdeiras da mesma promessa, insistirem tão firmemente nos seus direitos de dominação e orientação exclusiva das consciências, para a salvação das almas.
O Espiritismo, doutrina livre, dinâmica, sem dogmas de fé, sem intenções exclusivas ou pretensões salvacionistas, corresponde precisamente à fase de esclarecimento do horizonte espiritual. Por isso é que ele se apresenta como desenvolvimento natural do Cristianismo, seqüência inevitável do processo histórico, enfrentando o problema da salvação em termos de evolução, e procurando explicar as alegorias do passado à luz da compreensão racional. Curioso notar-se que, nesse ponto, os adversários do Espiritismo o acusam de racionalismo sustentando a tese imanente, ou seja, a tese provinda do período de imanência, segundo a qual existem mistérios que a razão não alcança. Entre esses mistérios, figura o da destinação messiânica de Israel, que, como vimos, não era explicável no período anterior, mas hoje é perfeitamente compreensível.
No período de imanência, o homem não havia atingido a emancipação espiritual que lhe permitiria encarar os grandes problemas da sua própria destinação. Possuindo, entretanto, o sentimento intuitivo desses problemas, procurava racionalizá-los através de símbolos, de alegorias. No período de transcendência, o homem, já espiritualmente desenvolvido, possui os elementos necessários para enfrentar esses problemas e resolvê-los. Isso não quer dizer, entretanto, que o Espiritismo se considere, ou que os espíritas se considerem como novos detentores da verdade absoluta. Pelo contrário: O Espiritismo proclama a existência de problemas que são ainda insolúveis, como o da própria natureza de Deus. Insolúveis, porém, no momento presente, uma vez que o processo evolutivo levará o homem, progressivamente, a desvendar os novos mistérios que lhe forem sendo propostos pela própria evolução.
As reservas modernas quanto ao racionalismo são explicáveis, diante da experiência que conduziu os homens ao ceticismo, à descrença, ao materialismo, e consequentemente a uma posição incômoda, de negativismo explícito ou implícito dos valores da vida. Mas o racionalismo espirita representa precisamente o reajuste da posição racionalista. Porque a razão aplicada ao julgamento do passado, em função das conquistas ainda recentes do presente, provoca desequilíbrio do espirito, quando se pretende estabelecer o absolutismo racional. No Espiritismo, a razão é apresentada como uma função do espirito, um dos seus instrumentos de ação, e não como o próprio espirito. O absolutismo da razão não existe, embora a razão se apresente como instrumento indispensável para o esclarecimento espiritual.
Por outro lado, é necessário considerar que a razão foi a escada de que o homem se serviu, para superar os horizontes anteriores, libertando-se do domínio das forças naturais ou instintivas. A razão é, por assim dizer, a alavanca espiritual que elevou o homem do período de imanência para o de transcendência, permitindo-lhe julgar-se a si mesmo e delinear as perspectivas da sua própria libertação. O Espiritismo, como doutrina que corresponde exatamente às aspirações e as exigências do horizonte espiritual, não pode abrir mão da razão, nem mesmo em favor da intuição, que pertence a um período futuro do desenvolvimento humano.
DESENVOLVIMENTO DA RAZÃO - O horizonte profético assinalou a fase culminante de desenvolvimento da razão. Já tivemos ocasião de estudar os motivos dessa ocorrência, no vasto período histórico que vai do IX ao III século antes de Cristo, segundo a teoria de John Murphy, Resta-nos apreciar a maneira por que a razão vai progressivamente impondo os seus direitos, até conquistar a supremacia necessária, para libertar o espírito humano dos liames terríveis do passado.
Podemos observar com segurança o vigoroso surto da razão no horizonte profético, a começar da própria agitação profética na Palestina. Os conquistadores de Canaã carregavam no espirito a herança das civilizações mesopotâmica e egípcia. Os germes da razão estavam bem desenvolvidos naquelas mentes inquietas, que procuravam construir um novo mundo para si mesmas e anunciar aos demais povos o advento de uma nova ordem. Mas foram os profetas de Israel os corifeus desse movimento renovador, quer levantando sua voz contra o apego aos velhos hábitos, quer anunciando com insistência a aproximação dos novos tempos.
Os debates teológicos de Israel aparecem como uma preparação da efervescência medieval. Os profetas agitam a pasmaceira teológica do povo eleito, propondo questões que perturbam a própria ordem social. Ao mesmo tempo, na Grécia, a filosofia se desprende da sua matriz órfica, supera o pensamento místico do orfismo tradicional, e ensaia os primeiros passos da perquirição racional. Na própria China estagnada surge a inquietação provocada pela introdução do Budismo e pelo aparecimento do Confucionismo. Na Índia védica, submetida ao jugo das tradições, a renovação budista mistura-se às influências procedentes do pensamento grego, cujo poder de irradiação não conhece barreiras, no Ocidente ou no Oriente. No mundo romano, a infiltração grega submetia as tradições do Império e o politeísmo dominante ao julgamento progressivo, que a contribuição judeu-cristã iria acelerar de maneira decisiva.
O Cristianismo aparece como verdadeiro remate desse vasto processo. Jesus não se limita a condenar o apego ao ritualismo religioso no mundo judaico. Ele proclama a natureza espiritual de Deus, e consequentemente a do homem, filho de Deus. Ensina a universalidade do espírito, rompendo assim as barreiras de todos os preconceitos tribais, que dividiam a humanidade em grupos raciais ou religiosos. Mostra que o samaritano podia ser melhor que um príncipe da igreja judaica, e adverte à mulher samaritana que Deus devia ser adorado, não através de fórmulas exteriores em locais considerados sagrados, mas "em espirito e verdade".
Quando observamos o fenômeno do aparecimento e da propagação do Cristianismo, primeiramente na Palestina, e depois no mundo, verificamos que se tratava de uma verdadeira revolução. Mas a característica dessa revolução é precisamente o apelo à razão. O Cristianismo exigia das criaturas o uso desse poder misterioso do raciocínio, que as fazia senhoras de si mesmas, responsáveis pelos seus atos. Contra a autoridade das Escrituras e dos Rabinos, bem como da própria tradição, Jesus proclamava a soberania da consciência. Limpar o vaso por dentro, e não apenas por fora; servir-se do Sábado, em vez de escravizar-se a ele; orar conscientemente, sabendo que Deus, sendo Pai, não dá pedra a quem lhe pede pão, nem cobra a quem lhe pede peixe.
Os homens ainda não estão preparados para compreender todos os princípios dessa revolução. Continuarão apegados, por muito tempo, aos velhos moldes autoritários, subjugados pelos antigos preceitos. Mas o fermento está lançado na medida de farinha, e inevitavelmente a fará levedar. Os próprios apóstolos não assimilarão suficientemente as lições do Mestre. Procurarão ajustar o Cristianismo aos velhos moldes judaicos, retê-lo nas sinagogas, prendê-la ao templo de Jerusalém. Pedro, o velho pescador, não admitirá cristão que não se submeta a ser circuncidado. Mas Jesus conhece um homem que amadureceu o suficiente para fazer prevalecer a razão sobre o costume, o uso, a tradição. Esse homem é Paulo de Tarso, que promoverá no Cristianismo nascente o movimento vivo de repulsa ao predomínio do passado.
A reforma grega do Orfismo pelo Pitagorismo, a reforma indiana do Hinduísmo pelo Budismo, a reforma chinesa do Taoísmo pelo Confucionismo, e a reforma síria do Judaísmo pelo Cristianismo, eis os grandes eventos históricos que assinalam o advento mundial, no horizonte profético, da era da razão. Pitágoras é o primeiro a ensaiar, na Grécia do século sexto, e no mundo inteiro, a união do pensamento místico ao racional. E a partir dos pitagóricos, o grande drama da evolução humana, durante milênios, se desenvolverá nesse plano: a luta pela racionalização da fé.
A crença pela crença, a fé pela fé, a obrigação e a necessidade de aceitar a tradição, como verdade absoluta, acabada e perfeita, são característicos dos horizontes primitivos, das fases de predomínio do instinto e do sentimento. Na proporção em que a razão se desenvolve, em que o homem aprende a pensar e a julgar, a fé cega, tradicional. Já não pode satisfazê-lo. A fórmula comodista: "Creio porque creio", exigirá um substituto dinâmico e fecundo: "Creio porque sei".
O horizonte profético se encerra com o predomínio da razão.
Ao contrário do que se costuma dizer, a razão não aparece como exclusivamente grega, não obstante a contribuição da Grécia seja a mais decisiva para o seu desenvolvimento. Encontramos, como já vimos acima, o florescimento da razão ao longo de todo o horizonte profético, prenunciando a supremacia mundial que ela deverá assumir, com o advento do horizonte espiritual. Mas haverá ainda uma grande fase histórica de reação, de luta profunda e morosa, entre a razão e a fé, embora aquela tenha de sair triunfante.
O DRAMA MEDIEVAL - A Idade Média é a fase dramática do desenvolvimento da razão. A tentativa pitagórica renova-se nessse vasto e sombrio período da história européia, mas em condições completamente diversas. O Cristianismo nascente recebera, desde a Palestina, um duplo impulso de racionalização: de um lado, a insistência do Cristo em libertar os homens do dogmatismo fideísta dos judeus; de outro, a influência do pensamento grego, bem patente nos próprios evangelhos. "Religião do livro", como mais tarde a chamariam os muçulmanos, penetrou essa nova religião no Império Romano em meio à efervescência da decadência, incentivando e acalorando os debates em torno dos problemas da fé. Mas no próprio Cristianismo a contradição dialética se acentua de maneira ameaçadora. Com o correr do tempo, a fé conseguiu superar sua antagonista, a razão, e submetê-la ao seu império. Nada exprime melhor esse fato do que a fórmula medieval: "A filosofia é serva da teologia.".
Os que ainda hoje acusam o Cristianismo de religião reacionária e obscurantista, em virtude do medievalismo e suas conseqüências, esquecem-se de que foi ele a única religião capaz de incentivar o desenvolvimento da razão, e até mesmo de preservar a herança cultural greco-romana através do período bárbaro. Esquecem-se de que próximo a Nazaré existia a Decápolis grega, e que o próprio nome da nova religião derivou de uma palavra grega. Esquecem-se ainda dos fatos históricos fundamentais do desenvolvimento do Cristianismo na Europa, entre os quais devemos assinalar a aproximação constante com o pensamento grego, o interesse pelas suas contribuições filosóficas, a tentativa de "pensar o evangelho através da lógica grega", e até mesmo a de platonizar e aristotelizar os fundamentos da nova religião.
A reação do fideísmo, entretanto, quase fez recuar o ímpeto da razão. O passado mítico e místico da humanidade pesou fundamente na balança. O próprio Cristo foi transformado em novo mito, e suas expressões alegóricas, empregadas sempre num sentido racional, esclarecedor, converteram-se em dogmas de fé. "O cordeiro que tira o pecado do mundo", imagem explicativa, referente à crença judaica na eficácia mágica do sacrifício de animais; "o resgate dos pecados pelo sangue", alegoria ligada à antiga superstição da era agrária, de purificação pela efusão de sangue; "a transubstanciação do pão e do vinho em corpo e sangue do Cristo", idéia mágica, de sentido alegórico, proveniente dos antigos "Mistérios" das religiões orientais; e assim tantas outras, adquiriram a força de preceitos literais, de ordenações divinas. Ao mesmo tempo, as formas do culto exterior, das religiões pagãs e judaicas, e as próprias festas do paganismo, foram adaptadas à nova religião. O processo de sincretismo religiosos, hoje tão bem conhecido e estudado pelos sociólogos, transformou o Cristianismo em novo domínio do mito e da mística.Apesar de todo esse gigantesco esforço de asfixia da razão, esta, entretanto, continuou a se desenvolver. Submetida ao império da fé, constrangida a servir aos dogmas, em vez de criticá-los, transformada em "serva da teologia", nem por isso a razão pôde ser esmagada. Porque, mesmo para servir ao dogmatismo, ela conseguia agitar e inquietar os espíritos. As heresias surgiram do chão "como cogumelos", segundo a expressão de Tertuliano, e mesmo depois que o principio de usucapião, do direito romano, foi empregado raciionalmente contra a razão, em defesa do fideísmo asfixiante, a razão, continuou a abrir as suas brechas na muralha dogmática. O próprio Tertuliano acabou como herege, e foram muitos os padres e doutores que, embriagados pelo vinho grego da dialética, resvalaram para o abismo das condenações.
A famosa Querela dos Universais, provocada pelo desafio de Porfírio, discípulo de Plotino, marcará a fase decisiva do desenvolvimento da razão, no mais agudo período da consolidação da dogmática medieval. Figuras brilhantes de pensadores cristãos como estrelas perdidas no céu escuro do medievalismo, assinalarão o roteiro da razão, como um traço de giz no quadro negro da época. A partir dos hereges dos quatro primeiros séculos, sufocados pela violência ortodoxa dos que se julgavam herdeiros exclusivos da era apostólica, podemos gizar no quadro uma linha que passa por Agostinho, no século V: por Erígena e Alcuíno, no século VIII; pelo dialético Beranger de Tours, do século IX, que negava a Eucaristia; por Abelardo, com seu "Sic et Non"; pelo trabalho dos "mestre de sentença", entre os quais se destaca Pedro Lombardo; para, afinal chegamos a Tomás de Aquino, que representa a codificação das contradições medievais, com sua "Suma Teológica."
O drama da razão na Idade Média empolga pelos seus lances heróicos, mas ao mesmo tempo assusta, pelo trágico de seus episódios cruéis. Abelardo é uma das figura mais representativas, senão a própria encarnação desse drama. Em pleno século XI, aceitava a supremacia da fé, mas chegou a tentar uma explicação racional do dogma da Trindade, caindo na condenação de heresia. Duas vezes foi condenado pelos Concílios. E para que não faltasse, no simbolismo da sua vida, o colorido das paixões humanas da época, temos o seu romance com Heloísa e o desfecho cruel a que é levado. Dilthey considerou a Idade Média como um caldeirão, em que ferviam as idéias, misturando, num gigantesco processo de fusão, as contribuições do pensamento grego-romano com os princípios judeu-cristãos.
Esse imenso "cozido", que teve de ser preparado através de um milênio, só estaria completo nos albores do século XIV, logo após a codificação da "Suma Teológica".
A luta entre a razão e a fé encontra, portanto, o seu epílogo, na Renascença. Embora tenhamos de reconhecer a sua continuidade, mesmo em nossos dias, a verdade é que ela agora se processa em plano secundário, como simples resíduo natural de épocas superadas. Descartes foi o espadachim que deu o golpe final nesse duelo de milênios. Inspirado pelo Espírito da Verdade, segundo a sua própria expressão, o filósofo do "cógito" libertou a filosofia da servidão medieval e preparou o terreno para o advento do Espiritismo. Mais tarde, Kardec poderia exclamar como vemos no pórtico de O Evangelho Segundo o Espiritismo, que "Fé inabalável é somente aquela que pode encarar a razão face a face, em todas as etapas da humanidade".
O que hoje se condena como racionalismo não é propriamente a razão, mas o absolutismo racional. A luta filosófica que se travou e ainda se trava no nosso tempo já não se refere mais ao problema antigo e medieval de razão e fé, mas às questões modernas, tipicamente metodológicas, de razão e intuição. É uma batalha que se trava no campo da teoria do conhecimento, e não mais no campo da superstição e do dogmatismo fideísta. Para o Espiritismo, essa batalha está superada.
A razão é apenas o instrumento de que o Espírito, o Ser, em sua manifestação temporal se serve para dominar o mundo. A intuição é o processo direto de conhecimento, de que o Espírito dispõe em seu plano próprio de ação - o espiritual - e que desenvolverá no plano material, na proporção em que o dominar pela razão. Mas a importância da razão, no processo evolutivo do homem, como forma de libertação espiritual, jamais poderá ser negada. Ao estudar o Renascimento, compreendemos o papel do racionalismo, na emancipação espiritual do homem, e o motivo por que o Espiritismo não pode abdicar de suas características racionalistas, para realizar a sua missão emancipadora total.
A MATURIDADE ESPIRITUAL - O Renascimento assinala o momento histórico de emancipação espiritual do homem. O processo de desenvolvimento da razão aparece completo, nesse homem novo que, com Descartes, refuta o dogmatismo medieval e proclama os direitos do pensamento. Não importa que o fenômeno cartesiano pertença ao século dezessete quando os albores da nova era já haviam surgido no catorze, no Quatrocento italiano. O processo, como vimos anteriormente vinha de muito antes. Mas assim como Abelardo encarna o drama medieval em todas as suas cores, Descartes é quem encarna a epopéia do Renascimento, a vitória da razão sobre o fideísmo medieval. Nele e através dele é que a razão triunfa para sempre, marcando os rumos de um novo mundo, para a humanidade renovada.
Mas o episódio histórico que assinalará, como verdadeiro marco no tempo, e momento de emancipação espiritual do homem, somente ocorrerá em fins do século dezoito, na efervescência da revolução Francesa. O estabelecimento do Culto da Razão, por Pierre Gaspar Chaumette, com a entronização da bailarina Candeille, da Ópera de Paris, na presença de Robespierre, em 1793, na Catedral de Notre Dame, é um episódio que representa verdadeira invasão do processo histórico pelo mito. Aliás, toda a Revolução Francesa apresenta esse curioso aspecto de uma revivescência mítica em pleno domínio da história. Foi um movimento histórico que se desenrolou no plano da alegoria. Cada uma das suas fases, e ela inteira, no seu conjunto, aparecem como símbolos. Nesse vasto enredo alegórico, o Culto a Razão é a simbologia específica, o episódio lendário, que marca a vitória do homem sobre a lenda e o mito.
Chaumette foi guilhotinado em 1794. Pagou caro e sem demora a ofensa cometida contra os poderes celestes, ao substituir em Notre Dame o culto da Mater Divina pelo da Razão Humana. Assim entenderam, e ainda hoje o entendem, os supersticiosos adversários do progresso espiritual do homem. Mas o sentido do episódio não estava na heresia. Chaumette não era um iconoclasta, nem um profanador de templos. Era apenas um intérprete do momento histórico em que a Razão Humana proclamava a sua libertação da Mater Divina, ou seja, em que o homem se libertava da Fé Dogmática, para usar o raciocínio, duramente conquistado através dos milênios.
Fácil compreender-se o horror que a audácia revolucionária provocou no mundo. A bailarina Candeille foi conduzida à Catedral de Notre Dame sobre um andor, vestida de azul, com barrete frígio na fronte, precedida de um cortejo de moças vestidas de branco, ostentando faixas tricolores. A convenção decidira substituir a religião tradicional por essa religião racionalista, e Robespierre presidiu a cerimônia. Uma estátua do Ateísmo foi queimada durante a festa que se seguiu. A religião de Chaumette era espiritualista, rejeitava o ateísmo e o materialismo. Mas quem poderia entender esse espiritualismo que não se submetia aos dogmas e aos sacramentos? Até hoje, o episódio do Culto da Razão causa arrepios aos próprios historiadores, que passam rapidamente sobre ele. É qualquer coisa de monstruuoso, que deve ser esquecido.
Durante dois meses, Novembro e Dezembro de 1793, o Culto da razão se estendeu pela França. As igrejas foram desprovidas de seus aparatos tradicionais e a Deusa Razão foi entronizada em cerimônias festivas. Carlyle, referindo-se a cerimônia de Notre Dame, exclama indignado que a bailarina Candeille era levada em procissão, e acrescenta: "escoltada por música de sopro, barretes frígios, e pela loucura do mundo". Realmente tudo parecia loucura, naquele momento irreal. A tradição se esboroava. Os ídolos caíam. Bispos e padres renunciavam. Carlyle acentua que surgiram de todos os lados: "curas com suas recém-desposadas freiras". E uma bailarina da Ópera era transformada em deusa, embora apenas de maneira simbólica.
Mas toda essa loucura nada mais era que a reação do espírito contra a asfixia das tradições. Qual o momento de libertação que não traz consigo esses arroubos? Passada, porém, as emoções do início, o coração se acalma e a razão restabelece as suas leis. Por outro lado, a "loucura do mundo", a que Carlyle se refere, pode ser historicamente identificada com a própria razão, pois vemo-la sempre denunciada pelos tradicionalistas, pelos conservadores renitentes, nos momentos cruciais da evolução humana. Os homens velhos, como as castas e os povos envelhecidos - ensina Ingenieros - vivem esclerosados em suas armaduras ideológicas e não podem compreender, senão como loucura, as verdadeiras revoluções sociais, que afetam os interesses estabelecidos e transformam as idéias dominantes.
A vitória da razão, na sua luta milenar contra o obscurantismo fideísta, não podia deixar de parecer um momento de loucura. Porque, desenvolvida através de um laborioso processo de acúmulo de experiências, de geração a geração, de civilização a civilização, o seu crescimento se assemelha ao das plantas que rompem o calçamento das ruas, para afirmar o poder da vida sobre as construções artificiais. Sabemos hoje, pelo aprofundamento que o relativismo crítico realizou na doutrina das categorias, de Kant, que a razão é o sistema dessas categorias vitais, forjadas no processo da experiência sempre renovada. Assim como a planta, rompendo o calçamento, afirma as exigências vitais da natureza, em toda a parte, assim também a razão, violentando as estruturas das velhas convenções, afirma as exigências vitais da consciência humana. A primeira dessas exigências é a liberdade, fundamento e essência do homem, que asfixiada durante um milênio no caldeirão medieval, explodiu com o fragar de uma detonação atômica, no período da Revolução Francesa.
Devemos ainda lembrar que o episódio do Culto da Razão tem o seu lugar no centro de uma linha de acontecimentos históricos. Não foi um caso isolado. Mesmo porque, na história, não existem casos dessa espécie. Já tivemos ocasião de lembrar o antecedente pitagórico da luta medieval entre a razão e a fé. Jérome Carcopino estabeleceu as ligações entre o pitagorismo e o cristianismo primitivo, nos seus estudos sobre a conversão do mundo romano. No período medieval já traçamos a linha que assinala o desenvolvimento dessa luta. Basta que a retomemos agora em Descartes, para vermos a continuidade no mundo moderno. Mas o mais curioso é vermos como essa luta sugeriu, no pensamento francês, tão afeito à síntese, a idéia de uma religião racional, que teve também o seu lento desenvolvimento.
Sem procurarmos entrar em maiores indagações, acentuamos que Descartes fundava o seu racionalismo na inspiração do Espírito da Verdade. Aparente contradição, que mais tarde se esclarecerá. Logo a seguir temos o caso de Espinosa, que estabelece ao mesmo tempo a forma racional de uma interpretação panteísta do cosmos e lança as bases, segundo Huby, "do mais radical racionalismo escriturístico". Dessas tentativas, surgem muitas derivações e paralelismos, que parecem desembocar na Convenção. Clootz propõe que o Deus Único seja o povo, e a Deusa Razão, de Chaumette, levará na mão o cetro de Júpiter-Povo.
Fracassada a tentativa, revolucionária, e retomadas as igrejas, não tardará muito a aparecer a tentativa de Auguste Comte, de fundação da Religião da Humanidade. Nessa linha milenar se insere o racionalismo espírita, que surge com Kardec, em meados do século dezenove, como síntese definitiva de um grande processo histórico. O Espiritismo representa o triunfo decisivo da razão. Não sobre a fé, com a qual se estabelece o equilíbrio, mas sobre o dogmatismo fideísta, que em nome da última asfixiava a primeira.
J. Herculano Pires

Um comentário:

  1. Amigo,
    que texto forte.
    Estou levando comigo para poder estudar com mais profundidae as palavras do grande filósofo.

    Valeu mais este post, meu amigo!!!

    Abraço,
    Jorge

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