1. OS CAMINHOS DA CIÊNCIA - Assim como a religião pode ser de natureza dedutiva ou indutiva, também a ciência pode seguir um desses caminhos. As ciências da antigüidade podem ser consideradas de natureza dedutiva. Partiam de princípios gerais, de ensinos tradicionais, para aplicações dedutivas a casos particulares. O exemplo mais esclarecedor deste tipo de ciência é o que nos oferece o princípio teológico da "ciência infusa", que é recebida sem aprendiizagem. Adão, o "primeiro homem", a teria recebido, e também Jesus Cristo, como homem a possuía sem ter estudado. Ciência revelada, que vem do Alto, inspiração divina, que o homem recebe e aplica às coisas da terra.
A tradição escolástica medieval é o exemplo clássico da ciência dedutiva, aristotélica, contra a qual se processou a revolução indutiva de Francis Bacon e a revolução racionalista de René Descartes. A experiência baconiana e a razão cartesiana representam as duas reações contra a autoridade da Mística e da Tradição, despertando o homem para a necessidade de verificar a exatidão e a segurança de seus pretensos conhecimentos. Dois poderes foram postos em choque, de maneira definitiva, por essas duas formas de reação: o poder da Mística Oriental, que se apresentava como revelação divina, e o poder da Tradição Aristotélica, que se definia como sujeição da razão humana àquela revelação.
A partir daquilo que podemos chamar "a revolução metódica", ou ainda "a revolução do método"- pois tanto Bacon quanto Descartes partiram da necessidade de um método para a conquista do conhecimento verdadeiro - os caminhos da ciência foram modificados. Já não bastavam a sanção das antigas escrituras sagradas, dos livros de Aristóteles ou da tradição cultural, para que a ciência se impusesse e pudesse ser transmitida como verdade. Cabia ao homem equacionar de novo os velhos problemas, para encontrar as soluções mais seguras. Já vimos o que isso representa, no processo geral da evolução humana. Mas o que agora nos importa é colocar nesse quadro o problema da ciência espírita.
Tomemos para exemplo a classificação das ciências, de Augusto Comte, que data da época de Kardec. Vemos que ela se constitui de seis ciências, correspondentes às fases da evolução fixadas na lei dos três estados. São as seguintes: 1) a Matemática, de tipo dedutivo, a mais antiga e mais simples, ao mesmo tempo a mais abstrata; 2) a Astronomia, que não poderia aparecer sem o desenvolvimento da matemática; 3) a Física, que decorre da existência das duas anteriores, e que embora tendo por objeto o concreto, depende dos conceitos abstratos da matemática; 4) a química, que não poderia existir sem o aparecimento das anteriores; 5) a Biologia, que parece nascer diretamente das duas últimas: 6) a Sociologia, que é ao mesmo tempo uma física, uma química e uma biologia social, e por isso mesmo a mais complexa e a mais recente das ciências.
Para Comte, não existia a Psicologia, uma vez que a alma se explicava como simples conseqüência do dinamismo orgânico. A Sociologia, rainha das ciências, representava o acabamento do edifício do saber. Não obstante, no volume quarto da "Revue Spirite", de abril de 1858, Kardec publica, precedido de breve comentário, interessante trecho da carta que lhe dirigira um leitor perguntando-lhe se um novo período não estava surgindo para as ciências, com a investigação dos fenômenos espíritas. Kardec concorda com o missivista, admitindo que o Espiritismo iniciou o "período psicológico". Podemos dizer que a visão comteana do desenvolvimento científico limitou-se ao plano existencial, e, portanto do concreto, do material. Da Matemática à Sociologia, tudo se passa no campo das leis físicas, materiais. Daí a razão porque Comte não admitia a Psicologia, pois esta, na verdade, nada mais era que o estudo de um epifenômeno: o conjunto de reações orgânicas da matéria.
Ao referir-se a um "período psicológico", que se iniciava com o Espiritismo, Kardec acentuou a importância moral do mesmo. O homem se destacava da matéria, libertava-se da estrutura fatalista das leis físicas, para recuperar, no próprio desenvolvimento das ciências, a sua natureza extrafísica. Convém lembrarmos a "lei dos três estados", que o Espiritismo modifica para "lei dos quatro estados". Segundo o Positivismo, a evolução humana teria sido realizada através de três fases: a teológica, a metafísica e a positiva, sendo que a primeira corresponderia a mentalidade mitológica; a Segunda, a do desenvolvimento do pensamento abstrato; a terceira, a do desenvolvimento das ciências. Já estudamos essas fases na seqüência dos horizontes culturais. Kardec acrescenta a fase psicológica, em que as ciências se abrem para a descoberta e a afirmação do psiquismo como fenômeno (e não mais como simples epifenômeno), reconhecendo-lhe a autonomia e a realidade positiva, verificável, susceptível de comprovação experimental.
Vemos a confirmação desse pensamento de Kardec ao longo de toda a sua obra. O Espiritismo é apresentado como ciência, porque, explica o mestre em A Gênese, capítulo primeiro: "Como meio de elaboração, o espiritismo procede exatamente da mesma maneira que as ciências positivas, aplicando o método experimental." E logo mais, no mesmo período, item 14: "As ciências só fizeram progressos importantes depois que basearam os seus estudos no método experimental. Até então, acreditava-se que esse método só era aplicável à matéria, ao passo que o é também às coisas metafísicas." Essa posição de Kardec está hoje confirmada pelo desenvolvimento da Parapsicologia, a primeira ciência positiva, segundo afirmava o Prof. Joseph Banks Rhine, da Duke University, EE.UU., cognominado "Pai da Parapsicologia", a romper os limites da concepção física do Universo e a provar a existência do extrafísico. Como se o Espiritismo já não o tivesse feito.
Com o espiritismo, portanto, a ciência mais complexa, a da alma, que Augusto Comte não considerava possível, abandonou também o caminho das deduções, como o fizeram as anteriores, para entrar no caminho das induções. É da observação dos fatos positivos que o Espiritismo parte para a comprovação da realidade extrafísica. Kardec ainda afirma, no mesmo período citado: "Não foram os fatos que confirmaram, a posteriori, a teoria, mas a teoria que veio, subseqüentemente, explicar e resumir os fatos."
2. DUALIDADE NA UNIDADE - Chegamos assim a uma constatação curiosa: o desenvolvimento científico leva as próprias ciências à dicotomia que elas insistentemente rejeitam. A dualidade cartesiana, hoje considerada herética, tanto nas ciências quanto na filosofia volta a se impor, no momento mesmo em que as ciências parecem dominar soberanamente o mundo do conhecimento. Quando a realidade extrafísica era mais fortemente repudiada, para sustentar-se, como base única da certeza do conhecimento e da segurança do homem, apenas a realidade física, eis que esta desmorona, ao impacto das investigações parapsicológicas, que nada mais são do que o desenvolvimento, no plano material, das pesquisas espíritas e metapsíquicas.
Mas além desse impacto, outro ainda mais forte vem atingir a sólida muralha dos conceitos físicos: a própria Física, para progredir, se desfaz em Energética. O desenvolvimento da Física Nuclear nada mais é do que a negação da matéria, segundo as próprias expressões de Albert Einstein, Arthur Compton, e outros físico eminente. Assim, em dois sentidos diversos: nas ciências do homem e nas ciências da natureza, o Materialismo e o Positivismo se desfazem, como simples miragens científicas. E, em lugar de ambos, impõe-se a realidade da Ciência Espírita.
Kardec afirmou, há mais de cem anos, em O Livro dos Espíritos, com a serenidade do homem que realmente sabia o que estava escrevendo: "O Espiritismo é a ciência nova que vem revelar aos homens, por meio de provas irrecusáveis, a existência e a natureza do mundo espiritual, bem como as suas relações com o mundo corpóreo." Vemos isso no item 5° do capítulo 10, do livro citado. E logo mais, no item 8°, acentuou: "A Ciência e a Religião são as duas alavancas da inteligência humana. Uma revela as leis do mundo material, e a outra as do mundo moral, tendo, no entanto, umas e outras, o mesmo princípio: Deus; razão porque não podem contradizer-se".
Como Ciência nova, última da escala das ciências, o Espiritismo abre uma nova era na história do conhecimento. E como todas as eras novas, esta se apresenta confusa, aparentemente cheia de contradições. A primeira e a mais forte dessas contradições, a que mais perturba os homens de ciência, é precisamente a da dicotomia a que já nos referimos. Como admitir-se depois dos próprios esforços de Einstein para provar a unidade das leis naturais, através de sua teoria do campo unificado, a dualidade que ora se apresenta? Temos então dois campos: um físico e outro extrafísico; e consequentemente duas formas de ciência, as físicas e as não físicas? Voltamos à dualidade cartesiana, ou o que parece ainda pior, à dualidade primitiva das superstições tribais ou do período metafísico?
Kardec explica, nos capítulos VII e VIII da "Introdução ao Estudo da Doutrina Espírita", que a ciência propriamente dita, ou seja, as chamadas ciências positivas, tem por objeto a matéria. O Espiritismo, entretanto, tem por objeto o Espírito, ou princípio inteligente do Universo". E acrescenta: "A ciência propriamente dita, como ciência é, portanto, incompetente para se pronunciar a respeito da questão do Espiritismo: não lhe compete ocupar-se do assunto, e o julgamento, qualquer que ele seja, favorável ou não, não teria nenhuma importância".
É que, enquanto o Espiritismo é uma forma de concepção geral do Universo e da Vida, as ciências não podem abranger o conjunto. Que fazem elas, senão enfrentar os problemas concernentes ao plano existencial? Quando estamos nesse plano, encarado apenas como o da realidade física, não percebemos o outro. Aliás, a própria fragmentação da Ciência, em tantas ciências quanto os campos específicos que tiveram de enfrentar, obrigou-as a buscar uma forma de reunificação no plano filosófico, com a Filosofia das Ciências. Não é esta, também, uma forma de volta à Metafísica, embora com os dados da Física? A dicotomia, como se vê, é um fantasma permanente, que nenhum exorcismo científico conseguiu afastar.
Os esforços do Reflexiologismo russo e do Condutismo norte-americano em Psicologia, para reduzirem o psiquismo a um simples epifenômeno, foram superados violentamente pelo desenvolvimento da Psicanálise e do que hoje denominamos Psicologia Profunda. Os esforços da Física, para dominar todo o campo das ciência, naturais e humanas, foram inúteis, quando ela mesma superou os seus próprios quadros, revelando a inexistência da matéria como tal. Mas essa mesma revelação, que para as ciências positivas parece um golpe de morte, para o Espiritismo não é mais do que a confirmação da unidade na dualidade, que ele sustentou desde o princípio. Não há dualidade, mas multiplicidade, pluralismo, uma riqueza infinita e inconcebível de planos de manifestação, mas esta manifestação é a de uma realidade única, a espiritual, princípio e fundamento de tudo. Por isso, Kardec advertiu que a Ciência e a Religião tem um mesmo princípio e não podem contradizer-se.
Compreendendo essa verdade, mas em plena era metafísica a Escolástica medieval quis subordinar a revelação científica, então entendida como filosófica, à dogmática teológica. Não sendo possível nem admissível a contradição, a ciência humana tinha de servir à ciência divina, e a filosofia devia conservar-se na posição de serva da teologia. Basta pensarmos na divisão do conhecimento humano, feita por Santo Agostinho, em "iluminação" e "experiência", para entendermos a subordinação lógica da razão à revelação. Mas Kardec demostra a existência de duas formas de revelação: a divina e a humana, ambas conjugadas num mesmo processo cognitivo. A raiz, aliás, se mostra no próprio plano etimológico: revelar é apenas por às claras o que estava oculto, e isso, tanto no referente às coisas materiais, quanto às espirituais. Ainda aqui, a dualidade na unidade.
Mas nem por isso podemos deixar de respeitar a dualidade como uma realidade que se impõe à condição humana. E assim como, nas próprias ciências positivas, encontramos a multiplicidade de objetos e métodos - não apenas dualidade, mas multiplicidade - assim também, no tocante ao Espiritismo, como ciência do espiritual, e às ciências positivas, como ciências do material, temos de considerar a necessidade de métodos diferentes, para objetos diversos. É o problema da moderna ontologia do objeto. Da mesma maneira por que os métodos da experimentação física não serviram à pesquisa psicológica ou sociológica, os métodos cientifico positivos são insuficientes para a investigação espírita. A ciência espírita tem os seus próprios métodos. E tanto isso é necessário e cientificamente válido, que, atualmente, a Física se desdobra em Física Nuclear ou Para-Física, e a Psicologia em Parapsicologia.
3. ESPÍRITO E MATÉRIA - A ciência espírita não procede por exclusão, mas procura a síntese. As ciências positivas, até agora, procederam por exclusão. Não podendo admitir a existência do espírito, deixaram-no à margem das suas cogitações, e acabaram por tentar excluí-lo definitivamente da realidade universal. Apesar disso, tiveram sempre de admiti-lo, na forma de um epifenômeno. Não era possível negar a evidência do espírito, tanto no processo individual da manifestação humana, quanto no processo coletivo, da vida social. Daí o aparecimento da Psicologia, que os mais renitentes materialistas procuraram reduzir à Fisiologia, e o aparecimento da Sociologia, que acabou exigindo a formulação de uma Para-Sociologia, com a Psicologia Social.
Espírito e matéria, como sustenta a ciência espírita, são duas constantes da realidade universal. Por isso, Kardec declara no item 16 do capítulo primeiro de A Gênese: "O Espiritismo e a Ciência se completam reciprocamente. A Ciência, sem o Espiritismo, não pode explicar certos fenômenos, somente pelas leis da matéria. O Espiritismo, sem a Ciência, careceria de apoio e confirmação." Ao fazer essa declaração, Kardec teve em mira o pensamento positivo e a possibilidade de comprovar-se a existência do espírito através dos fenômenos físicos.
Seria possível essa comprovação? Tanto o Espiritismo, como a Ciência Psíquica inglesa e Metapsíquica de Richet já o demonstraram, no século passado. Hoje, coube à Parapsicologia reafirmar aquelas demonstrações e procurar aprofundá-las, dentro das próprias exigências metodológicas das ciências positivas. Que estas exigências não se adaptam à natureza diversa do objeto, como dizia Kardec, também se comprova. As investigações parapsicológicas apenas arranham o litoral do imenso continente do espírito, e a todo momento se emaranham em dúvidas e controvérsias. Mas o espírito se afirma, independentemente das interpretações diversas, como uma realidade fenomênica.
Parece haver uma contradição nessa curiosa posição da fenomenologia paranormal. Mas a contradição decorre apenas da posição mental dos pesquisadores. Porque, se a realidade se constitui de espírito e matéria, e se o espírito se manifesta no existencial através da matéria, a própria realidade nada mais é do que uma manifestação paranormal. Tudo quanto existe é fenômeno, mas o é em função do número kantiano, da essência espiritual que se manifesta na existência. Dizer, pois, que o Espiritismo, em vez de espiritualizar os homens, materializa espíritos, é simplesmente sofismar. Não se pode espiritualizar os homens sem lhes dar a consciência de sua natureza espiritual, não através de uma imposição dogmática, hoje inadequada e perigosa, - que leva a maioria das pessoas à dúvida ou ao ceticismo - mas através da prova científica.
Como ciência do espírito, e portanto do elemento espiritual constitutivo do Universo, o Espiritismo procede de maneira analítica, no plano fenomênico. Mas, ao se elevar às conclusões indutivas, atinge, natural e fatalmente, o plano da síntese. É esse o motivo porque Richet considerou Kardec excessivamente crente, ingênuo, precipitado. Para o fisiologista que era Richet, a síntese das verificações fenomênicas não poderia jamais superar o plano da realidade fisiológica. Teria de ser uma síntese parcial, uma conclusão tirada apenas dos dados positivos, que no caso seriam os dados materiais da investigação. Para o espírita Kardec, dava-se exatamente o contrário. A síntese tinha de ser completa, uma vez que os dados materiais revelavam a presença do espiritual, a sua manifestação.
Impõe-se, neste caso, a observação de Descartes, de que é mais fácil conhecermos o nosso espírito do que o nosso corpo. A realidade espiritual nos é mais acessível, porque é a da nossa própria natureza. A realidade material é-nos estranha e quase inacessível. Quando o cientista da matéria observa os fenômenos, procurando explicações no plano dos seus conceitos habituais, acaba emaranhando-se nas dúvidas e perplexidades que aturdiram tantos investigadores. Quando, porém, como no caso de William Crookes ou Alfred Russell Wallace, o cientista da matéria não se esquece da sua natureza espiritual, a realidade transparece nos dados materiais da investigação.
Nosso conhecimento das coisas materiais é extremamente mutável, em virtude da própria natureza mutável dessas coisas. Mas nosso conhecimento de nós mesmos, ou das coisas espirituais, é estável, e podemos mesmo considerá-lo imutável. Por que esse conhecimento nos é dado por intuição direta, por uma percepção que coincide com a própria natureza do percipiente. Sujeito e objeto se confundem no processo da relação cognitiva. Tocamos de novo o problema que dividiu os filósofos jônicos e eleatas, na Grécia clássica: a realidade móvel de Heráclito e a estável de Zenon. O que nos mostra, mais uma vez, a acuidade intuitiva dos gregos, pois os dois aspectos universais continuam a aturdir-nos.
Certas pessoas querem negar a natureza científica do Espiritismo, por considerarem a "crença" espiritual uma simples superstição. Alegam que desde as eras mais remotas os homens acreditaram em espíritos. Mas não é o fato de sempre haverem acreditado o que importa, e sim o fato das próprias investigações científicas modernas confirmarem essa crença. Enquanto, por exemplo, a concepção geocêntrica do universo, tão arraigada, teve de modificar-se, diante da evidência científica, a concepção espiritual do homem, pelo contrário, mostrar-se irredutível. A ciência espírita só tem motivos para firmar-se nos seus conceitos, e não para ceder aos conceitos mutáveis das ciências materiais.
4. SEMENTES DE FOGO - Podemos dizer, diante da validade dos princípios espirituais, afirmados e reafirmados através do tempo, como dizia Descartes: "temos em nós sementes de ciências, como o sílex tem sementes de fogo". Kardec citou, na Introdução de O Evangelho Segundo o Espiritismo, Sócrates e Platão como precursores da Doutrina. Essa citação não nos impede, pelo contrário nos estimula, a verificar a existência de outros precursores no campo da ciência e da filosofia, antigas e modernas. Entre eles, não há dúvida que devemos colocar René Descartes, na própria França em que surgiria mais tarde o Consolador.
Na noite de 10 para 11 de novembro de 1619, Descartes, então jovem soldado acampado em Ulm, na Alemanha, sentiu-se tomado por intensas agitações. Seu amigo, biógrafo e correspondente, o Abade Baillet, diria mais tarde que ele: "entregou-se a uma espécie de entusiasmo, dispondo de tal maneira do seu espírito já cansado, que o pôs em estado de receber as impressões dos sonhos e das visões". De fato, Descartes, que se preocupava demasiado com a incerteza dos conhecimentos humanos, transmitidos tradicionalmente, deitou-se para dormir e teve nada menos de três sonhos, que considerou bastante significativos. O mais curioso é que esses sonhos já lhe haviam sido preditos pelo Demônio, que à maneira do que se verificava com Sócrates, o advertia de coisas por acontecer.
A importância desses sonhos, como sempre acontece quando se trata de ocorrências paranormais, não foi até hoje apreciada pelos historiadores e pelos intérpretes do filósofo. Mas Descartes declarou que eles lhe haviam revelado "os fundamentos da ciência admirável", uma espécie de conhecimento universal, válido para todos os homens e em todos os tempos. Essa ciência não seria elaborada apenas por ele, pois tratava-se de "uma obra imensa, que não poderia ser feita por um só". Comentando o episódio, acentua Gilbert Mury "Esse homem voluntarioso e frio tem qualquer coisa de um profeta. Anuncia a Boa Nova. Escolheu a rota da sabedoria, e nela permanecerá."
Descartes sentiu-se de tal maneira empolgado pelos sonhos que acreditou haver sido inspirado pelo Espírito da Verdade. O Abade Baillet registra esse fato em sua biografia do filósofo. Foi tal a clareza da intuição recebida, em forma onírica, que Descartes se considerou capaz de pulverizar a velha e falsa ciência escolástica, que lhe haviam impingido desde criança. Pediu a Deus que o amparasse, que lhe desse forças para realizar a tarefa que lhe cabia, na grande obra a ser desenvolvida. Rogou a Deus que o confirmasse no propósito de elaborar um método seguro para a boa direção do espírito humano. E desse episódio originou-se toda a sua obra, que abriu os caminhos da ciência moderna.
Não tinha Descartes, nessa ocasião, mais do que 23 anos .
Julgou-se, por isso mesmo, demasiado jovem para tão grande e perigosa empreitada. Não obstante, como um verdadeiro vidente, empenhou, dali por diante, todos os seus esforços, no sentido de adquirir conhecimentos e condições para o trabalho entrevisto. E dezoito anos depois lançou o "Discurso do Método", que rasgaria os novos caminhos da ciência. Cauteloso, diante dos perigos que ameaçavam os pensadores livres da época, Descartes não deixou, entretanto, de cumprir o seu trabalho, que Espinosa prosseguiria mais tarde, e que mais tarde ainda se completaria com a dedicação de Kardec.
A epopéia do "cógito", realizada no silêncio da meditação é uma indicação de rumos à nova ciência. Descartes mergulhou em si mesmo, negando toda a realidade material, inclusive a do próprio corpo, na procura de alguma realidade positiva, que se afirmasse por si mesma, de maneira indubitável. Foi então que descobriu a realidade inegável do espírito, proclamando, no limiar da nova era: "Cógito, ergo sum", ou seja: "Penso, logo existo." E no mesmo instante em que reconheceu essa verdade, julgou-se isolado do universo, perdido em si mesmo. Só podia afirmar a sua própria existência. Nada mais sabia, nem podia saber.
A maneira por que Descartes retoma contato com a realidade exterior é outra indicação de rumos. Descobre no fundo do "cógito", no seu próprio pensamento, a realidade suprema de Deus. Essa descoberta lhe devolve o Universo perdido. O filósofo da negação se converte no cientista da afirmação. Deus existe e o Universo é real. Espinosa escreverá a "Ética", mais tarde, sua obra máxima, a partir de uma premissa fixada por Descartes: a existência de Deus. É fácil compreendermos que a ciência admirável tinha um fundamento sólido, poderoso e amplo, que a ciência materialista rejeitou posteriormente. Mas, depois disso, quando a ciência admirável conseguiu, apesar da repulsa dos homens, novamente firmar-se em França, o fez de braços abertos para todos os fragmentos em que se partira a ciência da matéria.
Este é um tema que os estudiosos do Espiritismo precisam desenvolver. Num curso de introdução doutrinária, é bom que o coloquemos, a título de orientação para os estudantes e de sugestão para as suas futuras investigações. A chamada revolução cartesiana foi precursora da revolução espírita. A ciência admirável de Descartes é a mesma ciência espiritual de Kardec, ainda em desenvolvimento, por muito tempo, em nosso planeta. J. Herculano Pires
Que artigo belíssimo!!!
ResponderExcluirAcho que o grande Herculano Pires estava por demais inspirado para escrever este artigo.
Profundo, questionador, reflexivo, para estudar mais profundamente, apenas para compreendermos melhor a incrível obra do Kardec.
Meu amigo, parabéns por este blog.
Valeu e muito!!!
Uman