13 dezembro 2008

RELIGIÃO NO MUNDO ATUAL

Religião no mundo atual: horizontes de um debate
Bernardo Lewgoy - UFRGS. Dep.de antropologia
1- Evitando algumas armadilhas
Uma discussão como essa tem como tema o desafio de equacionar dois termos cuja definição é problemática mas que evoca a velha discussão sobre os efeitos não-intencionais da ação. Numa época de globalização ou mundialização de uma sociedade marcada pela intensa circulação de informações, pela automação e informatização, pela extensão instantânea de mercados e blocos que atravessam velhas fronteiras e pela montagem de formas mais sutis mas não menos danosas de dominação internacional qual o papel e o sentido que assumem a “religião”?
Em segundo lugar temos de encarar as virtudes e o caráter intelectualmente sobredeterminado, emocionalmente carregado e semanticamente equívoco de categorias que transitam entre o conceito numa tentativa de aproximação científica e a metáfora para expressar o nosso horror etnocentrico diante do outro como “fundamentalismo”e “religião” e “terrorismo”. Ora se a metáfora tem a virtude de expressar conteúdos complexos elas frequentemente são vitima do pecado da simplificação redutora, como se pode ver nos violentos ataques que a comunidade ‘sick’ sofreu na America. Se complexificar pode originar o sorriso de desprezo daqueles que pretendem abraçar uma posição anti-religiosa não esqueçamos que os fundamentalismos não precisam nem de Deus, podem estar perfeitamente representados em seus críticos.
É necessário entendermo-nos sobre o que estamos falando a fim de não nos confudirmos mutuamente ou seja, passarmos do mercado das metáforas para a ágora dos conceitos. Quero partir de uma cr´tiica ao possível enquadramento da religião como uma categoria abstrata e daí a ilusão de podermos julga-la ou então se não é melhor estratégia, na velha tradição romantica, incentivar um novo ecumenismo solidário de uma postura metodológica holista e historicista. Não quero com isso afirmar a desimportancia explicativa da religião, mas apenas sustentar que, ainda que ela não teha uma magnitude infinita também não pode ser relegada ao plano do irrelevante, o que seria cometer o erro inverso. Devemos assim, evitar estéril debate entre os que lamentam o excesso de religião e os que, contrariamente, deploram a sua falta.
Para o estrito ponto de vista economicista, o comportamento que aponta para o homo religiosus representa o velho obscurantismo, uma das muitas pedras no sapato na construção de um ordem social governada pelos assim chamados ditames da razão e da liberdade. Contrariamente as sentido etimológico de reunião, religião parece ser aquilo que divide os homens e, portanto, um imediato alvo de suspeita.
Religião, aparece, nesse sentido, como uma convidada indesejável da globalização, compreendida não em seus aspectos culturas mas em sua face econômica de união inevitável através da extensão triunfal do mercado, do afrouxamento de identidades e fronteiras, resíduos do mundo sólido e pesado de uma modernidade industrial. Os bolsões incômodos de uma atividade religiosa antimoderna originam-se nas fissuras periféricas de nossas sociedades como os pobres e os ‘orientais’, evocando todos os horrores que os pobres e excluídos, convenientemente reduzidos pelo olhar naturalista de classe à parte da paisagem, não conseguem mais nos despertar, a não ser quando retomam uma posição de sujeitos destrutivos via violência urbana.
Para entender o que está em jogo no atual debate sobre religião precisamos ter a consciência de que esse debate processa-se não no interior foruns academicos de especialistas mas , especialmente a partir do 11 de setembro de 2001 ( quando nunca se falou de fundamentalismo), o debate passou a tomar ares de um processo judicial em que a “religião” tende a ocupar o banco dos réus e nesse sentido, nós cientistas sociais tivessemos de ocupar o lugar de assistentes ora da promotoria ora da defesa. Parafraseando Clifford Geertz somos todos, especialistas ou leigos, testemunhas e atores de uma época em que a globalização é desafiada por uma multidão de insurgências ferozes e pontuais, muitas delas associadas com o termo “religião” e que apenas muito superficialmente poderiam alinhar-se como o clima de crítica do Forum Social Mundial. Se há espaço para religião em nosso encontro, ela alinha-se muito mais no espírito de uma tradição ecumênica de um espaço neutro de respeito e diálogo em busca de soluções responsáveis do que propriamente por uma disposição partidarista de confronto e implementação de uma proposta que caracterizaria o fundamentalismo religioso.
Não temos condição de julgar mas sim de mais modestamente, tentar compreender o que está em jogo, o background cultural de um debate reposto na arena da mídia e da opinião pública. Mas do que é que estamos falando mesmo quando empregamos o termo religião? Compreender o que está em jogo não significa abrir mão de valores, mesmo que num ambiente pluralista e desencantado, tenhamos pouca convicção sobre quais são esses valores.
A religião deve ser entendida como variável independente a causar senão a miséria humana pelo menos alguns de seus mais graves conflitos e, portanto, deve ser alvo de algum tipo de política pública nos sentido de sua erradicação? Ou pelo contrário deve ser entendida como parte implicada mas não contextualmente dependente, das correntes de transformação social que transfiguram pitorescas diferenças de origem em retrógrados ódios étnicos e maniqueístas. Parece assim criar-se um cenário em que a religião volta a estar presente nos cenário contemporâneo de modo contrário a sua etimologia de ‘religar’: religião parece ser o que desune, como causa de muitos dos sofrimentos vividos na dia-a-dia de sociedades que oprimem suas mulheres e mandam seus filhos para a morte. Em face da experiência genocida de religiosidades seculares, como a representada pela conjugação do Estado-Nação com os totalitarismos de direita e de esquerda, ao longo do século XX não podemos acreditar que a intolerância pertença ao domínio do religioso. Do contrário, os religiosos freqüentemente foram as vítimas de intolerâncias políticas, tanto na Alemanha nazista quanto na ex-União Soviética ou na China. Os conflitos entre tutsis e hutus em Ruanda não portam a marca do religioso e ainda assim, nada ficam a dever ao mais estreito dos fanatismos. Ninguém, igualmente diria que os conflitos entre católicos e protestantes na Irlanda do Norte tem uma conotação ou causa religiosa.
A fraqueza dessa generalização da religião como causa de conflitos foi apontada em recente trabalho por James Kurth quando este afirmou que os cientistas sociais, ao falarem da variavel explicativa religião, freqüentemente oscilam entre uma subdeterminismo a priori, quando fazem previsões óbvias que acabam nunca se cumprindo e um hiperdeterminismo a posteriori, quando tomam como desde sempre previsivel algo nunca antes haviam sido capazes de prever.
2-A secularização em xeque:
Em dois sentidos a religião está ocupando a cena midíática e intelectual, com equacionamentos os mais variados com movimentos e correntes de opinião oriundos de matrizes adversas, como as ideologias políticas seculares ou seja, o pentecostalismo e o fundamentalismo.
Entenda-se que o contexto de globalização no qual esse processo ocorre é o de colocação em questão um processo que não cessou de desafiar a reflexão tanto das igrejas como dos intelctuais e que foi chamado de secularização. Designando a separação moderna entre igreja e estado, a qual colaborou para uma crescente racionalização e autonomização da ação humana sem Deus, a secularização pareceu configurar uma tendência de evolução que para muitos países, franqueou as barreiras de identidade entre as pessoas. Se até algumas décadas atrás falava-se em fim da religião, o que se coloca hoje em dia é, nas sociedades influenciadas pelo estilo político e cognitivo racionalista e individualista do Ocidente: a privatização da experiência religiosa. Uma miriade de religiosidades não-institucionais, da fragmentária e rizomática nova-era a dissidências exóticas das igrejas tradicionais parecem indicar que vivemos uma mudança de horizonte de inserção de nossas pertenças e filiações religiosas e políticas. E aqui, temos várias porpostas de interpretação desse fenômeno, inclusive a do professor Otávio Velho, aqui presente, que aponta para um redução do papel estrutural da religião em face do aumento de seu papel performático.
Algumas conseqüências têm sido apontadas a partir da privatização da experiência religiosa: uma substituição da tradição para um situação de livre-escolha aponta para a metáfora do mercado e da competição como arena de disputa pela fé dos clientes-fiéis . Como contraparte desse primeiro efeito temos o aumento da necessidade de justificar nossas escolhas religiosas mesmo que elas se restrinjam a experiências mais emocionais e corporais, há uma momento de forte reflexividade na justificação das escolhas que diferencia-se da simples aceitação de uma perspectiva recebida.
Assim a religião passa a ser mais “uma” de nossas escolhas em vez de ser o fator que decide quais serão as nossas escolhas e isso é algo de muito importante
Outro exemplo interessante a se considerar nessa dinâmica secularizada, em que a religi]ão modifica-se e absorve um pesado influxo das ideologias ambientes zante de alternativas religiosas é o do espiritismo. O espiritismo decaiu na França, seu berço, e cresceu no Brasil sua pátria de adoção. Na França ele é considerado não uma espécie de religião mas um misticismo, uma forma de magia. Uma espírita brasileira residente na França apontou em entrevista a um jornal espírita, uma das possíveis razões para a impopularidade do espiritismo:é que aos franceses educados e de classe média é profundamente incomoda a idéia de sentir-se invadido mesmo que momentaneamente, por uma outra individualidade, caso da experiência mediúnica. O individualismo forneceria, assim, uma moldura ideologicamente antitética à experiência relacional de transe de possessão
O espiritismo não penetra nos estados unidos a não ser nos bolsões latinos influenciados por brasileiros. Nos, EUA a experiência espiritualista transita do chamado xamanismo urbanos, onde o eu se expande, para a chamada “canalização”, ou então para a chamada moda das Terapias de Vidas Passadas onde enfatiza-se os aspectos estritamente comunicativos e secretamente individuais dos contatos. Invoco esse exemplo para mostrar que a religiosidade relaciona-se com n outras características culturais sendo indispensável para a sua compreensão de uma postura metodológica holista e historicista
(Ainda sobre a diminuição do peso relativo da religião Por exemplo, dificilmente se perguntaria numa sala brasileira de busca de namoros virtuais na internet pela religião dos interlocutores: apenas para um minoria dos usuários dessas salas de chats a religião poderia indicar uma fronteira para um relacionamento. Se tivéssemos internet há 50 ou sessenta anos atrás dificilmente poderíamos conceber que o peso do fator identidade religiosa não fosse um objeto dos primeiros questionamentos cadastrais numa aproximação amorosa.)
Não é que a religião não tenha um lugar na privatização da experiência religiosa mas que ela já não cumpre o antigo papel ancilar que desempenhava antes do degelo da primazia católica no Brasil a partir da II Guerra Mundial.
O segundo efeito paradoxal do processo de secularização não é bem um efeito mas um desafio recentemente denominado, em recente artigo do sociólogo Peter Berger de dessecularização: ora bolsões de recusa à modernidade em mundos fechados, autênticos guetos religiosos como os ultraortodoxos judeus em Nova York ou Jerusalém ora partidos e movimentos que pretendem fazer do código religioso o princípio renovador e regulador da nação, como nos movimentos fundamentalistas, aliás brilhantemente analisados pelo sociologo italiano Enzo Pace. Fundamentalismo religioso: é uma categoria ambígua e polissemica, aprecendo designar tendencias ao enrijecimento constante nas grande s religiões
Para Pace há 3 caractertiscas principais dos atuais movimentos fundamentalistas de cariz étnico: uma escritura sagrada como bastião da legitimação das pretensões do grupo, a sacralização de um território geograficamente circunscrito e a satanização do inimigo como fonte de mobilização e de engajamento numa causa religiosamente sancionada. O problema no horizonte fundamentalista não é apenas a recusa ao dialogo mas á promoção ativa da intolerância maniqueísta e a promoção de ‘identidades assassinas’ a partir de um simples ideal de pureza. As reivindicações religiosas ou não de pureza, quando combinadas á questão étnica e territorial de forma belicista, parecem ser as configurações mais propicias á guerras de religião analisadas por Pace essas devem nos inquietar.
A despeito de uma série de contradições intelectuais que podemos apontar nos fundamentalistas, em sua recusa ao modo de vida ocidental mas aceitando a sua tecnologia e o seu dinheiro (armas e ouro sem novidades), o grande problema é o recrudescimento da intolerância no mundo moderno mas parece que a intolerância religiosa é o emblema de uma diferença intransponível e inegociável, muito além da curta duração de regimes autoritários e totalitários (ainda que a abertura no Irã fundamentalista possa caminhar na direção contrária) e que mexe no nervo simbólico mais sensível da globalização. O fundamentalismo islâmico funcionaria, nessa perspectiva. como um emblema do Mal absoluto, metáfora e projeção de todos os medos e fantasias de fragilidade de um sistema que se autocompreende de forma metaforicamente psicológica através da extremamente sensível bolsa de valores, que transita entre a euforia, a calma e o nervosismo. Não quero reduzir o problema muito complexo do fundamentalismo a uns poucos parágrafos nem incorrer nos sub ou hiperdeterminismos de que nos fala Kurth. Talvez um dos poucos saldo positivos do imenso drama cultural do 11 de setembro tenha sido o de forçar-nos a repensar nossos compromissos e cumplicidades axiológicas. Se os atos terroristas cumpriram-se em nome de um ataque aos EUA, nem por isso com nos identificamos nem com sua proposta nem com os seus métodos. Reafirmamos também, certos compromissos valorativos com o ideário democrático moderno que são a condição de possibilidade de qualquer diálogo interreligioso com um mínimo de viabilidade
O segunda desafio religioso é o espetacular crescimento das igrejas evangélicas, mormente as chamadas neopentecostais na América Latina com sua particular síntese entre uma muito distante matriz protestante, associada a tendências mágicas,sua atuação na mídia, sua sacralização do dinheiro e da prosperidade material, a intervenção na política, suas curas espetaculares, glossolalia, quebra de santos e praticas de guerra espiritual –essa parecendo introduzir algo que fere uma cara tradição de tolerância religiosa, o que ficou especialmente claro no espisódio do “chute da santa”, em 1995 , ou em algumas agressões a terreiros afro-brasileiros. No entanto mesmo no ápice de uma intolerância pentecostal, uma grande condescendência com o recém-converso e uma facilidade de transpor fronteiras é ainda possível na medida em que, na ótica pentecostal, “seu passado pertencia ao demônio” (logo as pentecostais dividem o mundo entre aqueles que estão sob o jugo da divina possessão e aqueles que estão sob a possessão de divindades pagãs/demoníacas. Ainda que alguns o aproximem a uma espécie de fundamentalismo e outros possam tomá-lo, erroneamente como indicio de uma protestantização ou modernização por baixo do Brasil, o crescimento de tendências pentecostalizantes apresenta uma novidade historica que se processa fora do grande concerto da globalização e que opera na promessa da inclusão, da prosperidade e da transformação radical na vida dos fiéis e de suas famílias. Paralelamente à conversão, o imaginário pentecostal reaviva um encantamento do mundo dividido entre os que receberam a mensagem e aqueles influenciados por demônios, o que gera interessantes e consistentes efeitos de autoestima e construção de um espaço inédito em termos de self individual nos fieis, ainda a ser devidamente investigados. Mesmo aqui não sabemos se a religião é o fator transformador ou se ela se insere numa trama contextual que lhe empresta um novo sentido sem absoluta descontinuidade cultural, a partir de referencias culturais próprias dos grupos populares, como aponta o trabalho de meu colega Pablo Seman.
3- O ecumenismo e a volta problema da tolerância religiosa
Vivemos a contemporaneidade com a ambivalente impressão de que, exilada para o “mínimo eu” (foro íntimo) ora temos uma saudável ausência de grilhões religiosos a dirigir nossas consciências e a impressão contrária de que a religiosidade volta com muita força no campo dos costumes e da religião, como que a iniciar um perigoso processo político e cultural (fuandamentalismo e pentecostalismo).
Em vista dessas tendências ambivalentes a relativizar o evolucionismo implícito na idéia de secularização, e diante da recusa em considerar a religião como o mal ou o bem em si mesmos ou mesmo como variável independente a orquestrar os sucessos e os desastres contemporâneos resta-nos indagar: o que pode ser feito a aí entramos na tradição ecumenista em torno de movimentos pela paz. Quando vemos os diversos atos pela paz no Brasil, reunindo religiosos de diversos matizes, ficamos a refletir se alguma lição não temos a fornecer ao resto do mundo em termos de convivência fraterna entre religiões e religiosidades diferentes.
Também uma aposta no diálogo se faz necessária. Dando uma olhada na internet comprendemos que há um tendencia ao diálogo presente em questões como doação de sangue por testemunhas de jeová, ou mesmo pela secularização do islã ou pela reforma do costume da excisão do clitóris, ou organizações católicas pela defesa dos direitos reprodutivos, ou oragnziações religiosas pacifistas, compreendemos que há sinais de esperança no horizonte.
Independente disso um novo ecumenismo faz-se com uma agenda de ativa militância pacificista, sem apriorismos de quaisquer espécies, capaz de tolerar o dialogo e aparar históricas arestas de intolerância entre as mais diversas religiões.
No horizonte dessa titude de tolerancia não posso dispensar um muito conhecido texto do intelectual polonês Leszek Kolakowsky, sobre o “elogio da inconsistencia”, que tantas vezes ouvi citado por Luiz Eduardo Soares que me parece ser central na proposição de um novo ecumenismo pluralista como oposição múltiplo ao pólo fundamentalista e intolerante do horizonte religioso contemporâneo. A “consistência” como coerência aos valores é admirável mas não leva necessariamente ao dialogo devido ao excesso de convicção que funciona como um convite á intolerância..
E termino citando-o:
"Temos de notar que a humanidade tem sobrevivido somente graças à inconsistência...a raça das pessoas inconsistentes continua a ser uma das maiores fontes de esperança de que a espécie humana conseguira , de alguma forma sobreviver "

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